(Est 5,1-2; 7,2-3; Sl 44/45; Ap 12,1-16; Jo 2,1-11)
Nesta segunda semana do mês de outubro, dedicado à animação missionária das comunidades cristãs, temos a esperada festa de Nossa Senhora Aparecida, a Mãe Negra desse país multicultural mas não totalmente livre da praga do racismo. Mergulhemos no acontecimento da Mãe Aparecida deixando-nos iluminar e orientar pela Palavra de Deus, dispostos a acolher o que quer nos ensinar sobre a missão nos tempos atuais. Não seria tempo de proclamar de muitos modos que as talhas de pedra do sistema néo-liberal estão vazias e a festa terminou antes do tempo? Que o cumprimento cego das leis de mercado favoreceram apenas a festa ostensiva de alguns à custa da miséria de muitos? Que os migrantes, especialmente os negros, são barrados nas fronteiras dos países que no passado couparam suas terras e os trataram como mercadorias? Que não há futuro fora da solidariedade fraterna?
“E a mãe de Jesus estava aí...”
O evangelista João nos lembra discretamente que naquele tempo houve um casamento em Caná e Jesus, sua mãe e seus discípulos estavam lá. É uma lembrança da presença discreta e anônima de Jesus, mediante seu Espírito, nas idas e vindas, subidas e descidas da caminhada da humanidade. E a afirmação da presença igualmente discreta e maternalmente ativa de Maria nos caminhos e descaminhos da humanidade.
Ao longo da história do cristianismo o povo de Deus soube captar essa presença em inúmeros momentos. E descobriu os traços de uma mulher que se apresenta como discípula do próprio filho, como mãe da comunidade fiel, como companheira de viagem, como consoladora dos aflitos, como conselheira admirável, como estrela de uma manhã radiosa, como arca da aliança entre povos divididos, como mediadora de um Deus que age sempre com gratuidade.
É importante sublinhar que essa presença de Maria não é de modo nenhum externa à comunidade eclesial. Ela não está nem fora e nem acima da Igreja. O lugar de Maria é junto aos discípulos e discípulas, escutando e ensinando, precedendo e acompanhando, lutando e celebrando, caminhando com seus passos lentos mas sempre firmes, mesmo quando os ventos sopram noutra direção. Tanto quanto mãe da Igreja, Maria é seu símbolo mais completo e eloquente.
“Eles não têm mais vinho!”
Os supermercados abarrotados de mercadorias e as vitrines com suas novidades sedutoras querem nos convencer de que o mundo vai muito bem. As festas e feiras que se multiplicam reforçam a impressão de que nada falta a ninguém. Corremos o risco de convencermo-nos de que o Mercado é o bom pastor e a quem se entrega a ele nada faltará. Embriagados pela sede de consumo e pela fome de lucro, os ‘sacerdotes’ do sistema se imaginam caminhando por prados e campinas verdejantes, longe do grito dos oprimidos e da poluição que destrói o mundo em ritmo galopante.
Maria gosta de ser discreta mas não aceita ser indiferente. Mesmo quando ninguém vê ou não quer ver que falta vinho e vida, ela ousa falar: “Eles não têm mais vinho...” Maria vê que nem todos têm acesso à festa da vida e compreende que a orgia dos opressores e indiferentes não pode durar para sempre. Somente a misericórdia de Deus deve se estender de geração em geração. Maria nos mostra que, por mais chato que possa parecer, faz parte do cômpito dos missionários/as alertar para a falência dos sistemas que confiam cegamente na concorrência e no acúmulo e denunciar a carência desumana à qual grandes multidões estão acorrentadas.
Como mãe e intercessora, Maria se dirige a Jesus e pede sua intervenção. E nem sempre faz isso usando palavras. O povo brasileiro soube entender que, ao assumir a cor escura dos corpos dos negros escravizados como máquinas de produção, Maria estava gritando a dignidade dos escravos e denunciando a falência dos sistema escravagista. Quando até os discípulos de seu Filho escravizavam os negros em seus templos e fazendas, Maria se fez presente na dor e na cor própria deles. Esse foi seu grito profético para dizer que faltava vinho e sobrava suor e sangue derramados em benefício de uns poucos.
“Façam o que ele mandar...”
Como missionários e missionárias, podemos aprender com Maria. É verdade que estão sempre presentes os riscos de pensar e desenvolver a missão como um projeto de tutela de um povo considerado sempre menor e inferior; ou como uma empresa colonialista ou desenvolvimentista que confunde modernização técnica com humanização; ou ainda como um projeto doutrinal e fundamentalista, centrado na Igreja e nas suas leis e tradições, com o objetivo central de expandir a Igreja e não de servir ao povo.
Maria nos ensina que precisamos basicamente lembrar ao povo que a única alternativa para as falências e carências da nossa sociedade é fazer o que Jesus pede. O caminho da liberdade pessoal e social é a palavra-ação de Jesus Cristo: a abertura à intervenção criadora de Deus; a confiança na própria dignidade e na própria capacidade; a solidariedade e a colaboração com os outros; a convicção de que tudo aquilo que é feito em vista do bem dos outros produz seus frutos, cedo ou tarde.
“Façam o que ele mandar...” É isso os missionários/as precisamos lembrar e relembrar ao mundo. Não podemos esquecer, porém, de cumprir pessoalmente esse mandato de Maria. Sabemo-nos radicalmente comprometidos com o caminho trilhado e indicado pelo Mestre, com sua Palavra de vida e, por isso, não nos preocupamos apenas em anunciar, mas também em testemunhar com a vida aquilo que cremos e propomos e ajudar a realizá-lo com as próprias mãos.
“O meu desejo é a vida do meu povo...”
Sempre me intrigaram as palavras do Salmo 44/45 aplicadas a Maria: “Esqueça o seu povo e a casa do seu pai, pois o rei se apaixonou pela sua beleza.” Não me soa bem o pedido para esquecer o próprio povo, renegar as próprias origens. Mas no horizonte da espiritualidade missionária essas palavras adquirem sentido. Quem tem entranhas missionárias é capaz de tomar distância da casa e dos apelos dos pais e dos filhos, da comunidade e da etnia para fazer-se próximo daqueles que estão longe, irmão ou irmã dos últimos. É isso que nos ensina Maria em sua manifestação nas águas do rio Parnaíba.
A atitude da rainha Ester é o protótipo desenvolvido por Maria, modelo e inspiração para os/as missionários/as. O rei lhe dissera para pedir aquilo que desejasse e ele lhe daria, mesmo que fosse a metade do seu reino. E Ester respondeu decidamente: “O meu desejo é a vida do meu povo!” Nem honra, nem sucesso, nem riqueza, nem vida longa para si mesma, nem bênção para os grandes: respeito à dignidade e possibilidades de vida abundante para o povo. Para os/as missionários/as vida do povo deve estar acima tudo, mesmo acima do crescimento da Igreja e dos seus direitos frente aos estados.
“Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos”
Maria pediu e os servidores fizeram o que Jesus solicitou, mesmo não compreendendo o sentido e até desconfiando da eficácia do que faziam. O resultado foi vinho bom e abundante, fraternidade e alegria duradouras, o reino de Deus chegando antecipadamente em forma de sacramento. Assim, a missão tem o objetivo ajudar os povos a descobrirem seus próprios recursos e possibilidades de gerar vida e torná-la abundante.
A narração de São João termina lembrando que esse foi o primeiro sinal realizado por Jesus e que, em seguida, ele desce para Cafarnaum com sua mãe, seus familiares e seus discípulos. É importante observar que nesse momento importante da missão de Jesus estão juntos a comunidade e a família. Fica a impressão de que os/as discípulos/as e missionários/as de Jesus fazem parte de sua família e precisam fazer o possível para envolver seus próprios familiares nessa aventura de fé.
Finalmente, lembremos que o caminho de Caná para Cafarnaum é uma descida. Essa descida é tão eloquente como a transformação da água em vinho. A descida do extraordinário para o cotidiano anônimo, o processo de encarnação é absolutamente essencial para a missão em todos os tempos. Como povo brasileiro temos o direito de curtir a nomeação para sediar a copa do mundo em 2014 e os jogos olímpicos em 2016, mas não podemos esquecer o cotidiano desafio de gerar um país mais justo.
Pe. Itacir Brassiani msf