sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O desejo de Maria é que o povo brasileiro viva bem.
(Est 5,1-2; 7,2-3; Sl 44/45; Ap 12,1-16; Jo 2,1-11)

Nesta segunda semana do mês de outubro, dedicado à animação missionária das comunidades cristãs, temos a esperada festa de Nossa Senhora Aparecida, a Mãe Negra desse país multicultural mas não totalmente livre da praga do racismo. Mergulhemos no acontecimento da Mãe Aparecida deixando-nos iluminar e orientar pela Palavra de Deus, dispostos a acolher o que quer nos ensinar sobre a missão nos tempos atuais. Não seria tempo de proclamar de muitos modos que as talhas de pedra do sistema néo-liberal estão vazias e a festa terminou antes do tempo? Que o cumprimento cego das leis de mercado favoreceram apenas a festa ostensiva de alguns à custa da miséria de muitos? Que os migrantes, especialmente os negros, são barrados nas fronteiras dos países que no passado couparam suas terras e os trataram como mercadorias? Que não há futuro fora da solidariedade fraterna?
“E a mãe de Jesus estava aí...”
O evangelista João nos lembra discretamente que naquele tempo houve um casamento em Caná e Jesus, sua mãe e seus discípulos estavam lá. É uma lembrança da presença discreta e anônima de Jesus, mediante seu Espírito, nas idas e vindas, subidas e descidas da caminhada da humanidade. E a afirmação da presença igualmente discreta e maternalmente ativa de Maria nos caminhos e descaminhos da humanidade.
Ao longo da história do cristianismo o povo de Deus soube captar essa presença em inúmeros momentos. E descobriu os traços de uma mulher que se apresenta como discípula do próprio filho, como mãe da comunidade fiel, como companheira de viagem, como consoladora dos aflitos, como conselheira admirável, como estrela de uma manhã radiosa, como arca da aliança entre povos divididos, como mediadora de um Deus que age sempre com gratuidade.
É importante sublinhar que essa presença de Maria não é de modo nenhum externa à comunidade eclesial. Ela não está nem fora e nem acima da Igreja. O lugar de Maria é junto aos discípulos e discípulas, escutando e ensinando, precedendo e acompanhando, lutando e celebrando, caminhando com seus passos lentos mas sempre firmes, mesmo quando os ventos sopram noutra direção. Tanto quanto mãe da Igreja, Maria é seu símbolo mais completo e eloquente.
“Eles não têm mais vinho!”
Os supermercados abarrotados de mercadorias e as vitrines com suas novidades sedutoras querem nos convencer de que o mundo vai muito bem. As festas e feiras que se multiplicam reforçam a impressão de que nada falta a ninguém. Corremos o risco de convencermo-nos de que o Mercado é o bom pastor e a quem se entrega a ele nada faltará. Embriagados pela sede de consumo e pela fome de lucro, os ‘sacerdotes’ do sistema se imaginam caminhando por prados e campinas verdejantes, longe do grito dos oprimidos e da poluição que destrói o mundo em ritmo galopante.
Maria gosta de ser discreta mas não aceita ser indiferente. Mesmo quando ninguém vê ou não quer ver que falta vinho e vida, ela ousa falar: “Eles não têm mais vinho...” Maria vê que nem todos têm acesso à festa da vida e compreende que a orgia dos opressores e indiferentes não pode durar para sempre. Somente a misericórdia de Deus deve se estender de geração em geração. Maria nos mostra que, por mais chato que possa parecer, faz parte do cômpito dos missionários/as alertar para a falência dos sistemas que confiam cegamente na concorrência e no acúmulo e denunciar a carência desumana à qual grandes multidões estão acorrentadas.
Como mãe e intercessora, Maria se dirige a Jesus e pede sua intervenção. E nem sempre faz isso usando palavras. O povo brasileiro soube entender que, ao assumir a cor escura dos corpos dos negros escravizados como máquinas de produção, Maria estava gritando a dignidade dos escravos e denunciando a falência dos sistema escravagista. Quando até os discípulos de seu Filho escravizavam os negros em seus templos e fazendas, Maria se fez presente na dor e na cor própria deles. Esse foi seu grito profético para dizer que faltava vinho e sobrava suor e sangue derramados em benefício de uns poucos.
“Façam o que ele mandar...”
Como missionários e missionárias, podemos aprender com Maria. É verdade que estão sempre presentes os riscos de pensar e desenvolver a missão como um projeto de tutela de um povo considerado sempre menor e inferior; ou como uma empresa colonialista ou desenvolvimentista que confunde modernização técnica com humanização; ou ainda como um projeto doutrinal e fundamentalista, centrado na Igreja e nas suas leis e tradições, com o objetivo central de expandir a Igreja e não de servir ao povo.
Maria nos ensina que precisamos basicamente lembrar ao povo que a única alternativa para as falências e carências da nossa sociedade é fazer o que Jesus pede. O caminho da liberdade pessoal e social é a palavra-ação de Jesus Cristo: a abertura à intervenção criadora de Deus; a confiança na própria dignidade e na própria capacidade; a solidariedade e a colaboração com os outros; a convicção de que tudo aquilo que é feito em vista do bem dos outros produz seus frutos, cedo ou tarde.
“Façam o que ele mandar...” É isso os missionários/as precisamos lembrar e relembrar ao mundo. Não podemos esquecer, porém, de cumprir pessoalmente esse mandato de Maria. Sabemo-nos radicalmente comprometidos com o caminho trilhado e indicado pelo Mestre, com sua Palavra de vida e, por isso, não nos preocupamos apenas em anunciar, mas também em testemunhar com a vida aquilo que cremos e propomos e ajudar a realizá-lo com as próprias mãos.
“O meu desejo é a vida do meu povo...”
Sempre me intrigaram as palavras do Salmo 44/45 aplicadas a Maria: “Esqueça o seu povo e a casa do seu pai, pois o rei se apaixonou pela sua beleza.” Não me soa bem o pedido para esquecer o próprio povo, renegar as próprias origens. Mas no horizonte da espiritualidade missionária essas palavras adquirem sentido. Quem tem entranhas missionárias é capaz de tomar distância da casa e dos apelos dos pais e dos filhos, da comunidade e da etnia para fazer-se próximo daqueles que estão longe, irmão ou irmã dos últimos. É isso que nos ensina Maria em sua manifestação nas águas do rio Parnaíba.
A atitude da rainha Ester é o protótipo desenvolvido por Maria, modelo e inspiração para os/as missionários/as. O rei lhe dissera para pedir aquilo que desejasse e ele lhe daria, mesmo que fosse a metade do seu reino. E Ester respondeu decidamente: “O meu desejo é a vida do meu povo!” Nem honra, nem sucesso, nem riqueza, nem vida longa para si mesma, nem bênção para os grandes: respeito à dignidade e possibilidades de vida abundante para o povo. Para os/as missionários/as vida do povo deve estar acima tudo, mesmo acima do crescimento da Igreja e dos seus direitos frente aos estados.
“Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos”
Maria pediu e os servidores fizeram o que Jesus solicitou, mesmo não compreendendo o sentido e até desconfiando da eficácia do que faziam. O resultado foi vinho bom e abundante, fraternidade e alegria duradouras, o reino de Deus chegando antecipadamente em forma de sacramento. Assim, a missão tem o objetivo ajudar os povos a descobrirem seus próprios recursos e possibilidades de gerar vida e torná-la abundante.
A narração de São João termina lembrando que esse foi o primeiro sinal realizado por Jesus e que, em seguida, ele desce para Cafarnaum com sua mãe, seus familiares e seus discípulos. É importante observar que nesse momento importante da missão de Jesus estão juntos a comunidade e a família. Fica a impressão de que os/as discípulos/as e missionários/as de Jesus fazem parte de sua família e precisam fazer o possível para envolver seus próprios familiares nessa aventura de fé.
Finalmente, lembremos que o caminho de Caná para Cafarnaum é uma descida. Essa descida é tão eloquente como a transformação da água em vinho. A descida do extraordinário para o cotidiano anônimo, o processo de encarnação é absolutamente essencial para a missão em todos os tempos. Como povo brasileiro temos o direito de curtir a nomeação para sediar a copa do mundo em 2014 e os jogos olímpicos em 2016, mas não podemos esquecer o cotidiano desafio de gerar um país mais justo.
Pe. Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Carta a Francisco de Assis


Por ocasião dos 800 anos do aniversário da fundação da ordem franciscana, Francisco J. Castro Miramontes, escreve uma carta a São Francisco de Assis, relatando suas preocupações, decepções, alegrias e esperanças.
Francisco J. Castro Miramontes é sacerdote franciscano, Licenciado em Direito Civil e Canônico e Diplomado em Sagrada Escritura. Miramontes é o delegado de Justicia y Paz da ordem franciscana e responsável pelo Lar de Espiritualidade São Francisco de Assis, que acolhe peregrinos, em Santiago de Compostela. É também autor de, entre outros livros, Alter Christus. Francisco de Asís, signo del amor. Madrid: Editorial San Pablo, 2009.
Eis a Carta a Francisco de Assis, escrita por Francisco Castro Miramontes e publicada no sítio espanhol Religión Digital, 16-04-2009. A tradução é do Cepat.
Irmão Francisco: paz e bem. Já se passaram quase oito séculos e ainda continuamos a recordar teu nome, mesmo quando certamente terias preferido passar de maneira discreta pela história, porque na realidade eras, de coração, um cidadão do céu. Quase oitocentos anos ao longo dos quais a Humanidade continuou seu curso e voltamos a cair nos graves erros da tua época. De fato, continuamos a ver em ti, homem do teu tempo, curtido na lida cotidiana em um meio cultural, político, religioso e econômico determinado, alguém que tem muito a dizer-nos hoje. Nesse sentido, está claro que não perdeste nem um pouquinho de atualidade, de novidade e de originalidade.
Mas, ao mesmo tempo em que constato isto, nem por isso deixo de sentir uma espécie de saudade, e ao mesmo tempo de tristeza. Me explico. Sentimos saudades de alguém, de algo, de algum lugar, que identificamos como único, belo, essencial em nossas vidas. E o fazemos precisamente porque tememos tê-lo perdido, ou que já não volta mais, ou que nada volta a ser o mesmo. Minha saudade de ti consiste talvez em que sinto que a tua história de amor ficou empacada, estancada, perdida, como se tratasse de uma ilha, no oceano imenso da história, como se o que tu viveste já não pudesse ser vivido hoje, ao menos não da mesma maneira e com a mesma intensidade. E me refiro não à tua vida concreta que, ao fim e ao cabo, é única e irrepetível, mas à tua experiência de amor solidário e generoso, teu compromisso desde e pela paz, que hoje tanto necessitamos.
A saudade é positiva se nos faz renascer para o que há de melhor em nós mesmos, mesmo que seja a força de idealizar e sonhar com o belo. A tristeza me brota – te confesso – porque comprovo que o ser humano de hoje, na realidade, não evoluiu. É verdade que a tecnologia é deslumbrante. Certamente, te sobressaltava comprovar como se avançou no aspecto da técnica ou da medicina, mas de um modo injusto, já que convertemos o mundo num gigantesco leprosário no qual marginalizamos centenas de milhões de pessoas que necessitam sobreviver (e às vezes nem sequer isso) em meio aos açoites insultantes da miséria. Sim, sem dúvida, tu, hoje, novamente estarias aí, junto destes novos “leprosos”.
O grande avanço, o progresso do qual os políticos tanto falam, na realidade é um pouco fictício. Para algumas pessoas a vida é um pouco mais cômoda, têm (temos) muitos meios materiais, mas o coração continua sendo o mesmo, aquele que tu conheceste em teu tempo. As diferenças, aqui, são de mero matiz. No teu tempo vestias de um jeito, viajavas a cavalo, não tinhas televisão nem internet, mas o coração humano podia chegar a ser imensamente mesquinho, como hoje. A verdadeira revolução, a do coração, iniciada por teu Jesus e continuada por ti, ainda está inconclusa. É um grande fracasso, mas ao mesmo tempo também um estímulo para continuar construindo sonhos e esperanças, porque, como podes comprovar, ainda está quase tudo por fazer. É certo que houve belos acontecimentos, que o bem continua abrindo espaço no meio da história, que há pessoas maravilhosas que se parecem muito contigo, mas o mal segue sendo contumaz e resiste em abandonar o coração humano, em cuja terra brotam todas as sementes de confronto e violência. Das guerras de nosso tempo não quero nem te falar, de tantas formas de guerra muito mais cruentas que as de teu tempo, porque hoje é muito fácil matar: que horror!
Tua família religiosa – ainda que não quiseste fundar nada por não se sentir digno – foi e continua sendo, muito próspera, mesmo que tenha sido uma história de luzes e sombras, de luta para conquistar um belo ideal ao mesmo tempo que a realidade concreta se nos impõe uma realidade cheia de contradições e infidelidades. Hoje existem não sei quantos movimentos religiosos e culturais que seguem o teu caminho. A Igreja beatificou e canonizou várias centenas de seguidores teus (perdoa; seguidores do Evangelho). Também teus filhos e filhas ofereceram seu sangue em martírio, sem olhar para trás, sentindo-se herdeiros do Reino dos Céus, com essa liberdade da qual tu falavas com frequência, aquela que nos leva a fazer só aquilo que é contrário “à nossa alma”. E no meio do mar do mundo continuamos a nos referir à tua “perfeita alegria”, aquela que expressaste ao Irmão Leone a caminho de Santa Maria, quando o tempo piorava e confabulavam com o cansaço e a fome. Chegar à porta da tua casa e não ser recebido devia ser acatado com paciência, a ciência da paz, vencendo-se a si mesmo. É aí, na adversidade, onde vence a humildade da pessoa pacífica e enamorada da vida. Viver comprometidos com o amor é uma aposta na verdade caritativa que tu aprendeste na escola de Jesus de Nazaré.
A Igreja atual continua sendo, em parte, a Igreja do teu tempo, porque é formada por homens e mulheres frágeis. Ela está sendo muito criticada, ma não se quer ver mais do que aquilo que interessa ver. Graças a Deus – a quem tu tantas vezes davas graças por tudo e apesar de tudo – seguem se produzindo no seio da Igreja muitos gestos de entrega generosa pela causa do Evangelho, nem sempre compreendidos por algumas pessoas, e pelos poderes deste mundo, que não desejam ter próximos testemunhas da verdade, por medo de que descubram muitas mentiras sobre as quais se apóia este mundo.
Continua-se a falar de ti – e já sei que isso não lhe agrada muito –, vencedor de vaidades e prepotências, como um homem de coração nobre e espírito humilde, como um grande amante da criação, como testemunha e portador da paz. Anualmente, acodem a Assis, e a outros lugares que guardam a tua memória, muitíssimas pessoas provenientes do mundo inteiro. Por que será? Te lembro aqui as palavras daquele irmão teu que te perguntava por que todos iam ao teu encontro, se na realidade tu eras o contrário do paradigma de herói do teu tempo. A tua resposta foi simples e realista: porque Deus conhecia teu pecado e quis manifestar-se, como sempre, através de um homem frágil e consciente de suas limitações. “O homem é o que são os olhos de Deus, e isso basta”, costumavas dizer. Estavas muito consciente da tua indigência, mas também do grande amor de Deus para com as criaturas.
Te confesso também que em certo modo hoje voltamos a te decepcionar, posto que nos tornamos muito acomodados e pouco comprometidos. Inclusive te “sequestramos”, porque falamos muito de ti, em homenagem a ti erguemos monumentos e majestosos prédios, teu nome está em ruas e até há cidades que tem o teu nome. Plasmarei aqui, por escrito, o que tu dizias: “Os santos fazem as obras, e nós, ao narrá-las queremos receber honra e glória”. Talvez seja assim. É mais fácil falar dos outros do que fazer da própria vida um caminho de encontro com Deus e a bondade. (...).
Dizem que um dos personagens mais conhecidos da história do século XX chegou a dizer – depois de liderar uma revolução – que na realidade ele teria necessitado de uma dúzia de “Franciscos de Assis” para que se tivesse realizado o sonho. Afinal, o lobo que mora em nós sai feito bicho selvagem à procura de quem devorar. Tu foste um rebelde, um revolucionário do coração, e hoje te lembramos por isso, e eu, pessoalmente, te agradeço por isso. Sabes que em minha vida tu és muito importante. Cada vez que dirijo meus passos, caminhando pela rua que leva teu nome, para o convento de São Francisco de Santiago de Compostela, e contemplo a tua efígie de braços abertos no “monumento”, reconheço que me dá a impressão de que a pedra me sorri, de que tu estás presente, na pedra moldada, na água da chuva, nos pássaros que cantam, nos viandantes... na vida, no amor, na paz e na esperança.
Quero concluir esta improvisada carta de amigo, de irmão, com uma oração, para que a recitemos juntos. Trata-se da “oração da paz”, composta muito tempo depois de ti, mas que sem dúvida reflete perfeitamente o teu espírito e estilo de vida. Ficamos combinados para um novo encontro, quando Deus quiser. Já tenho vontade de estar contigo. Até sempre, Francisco, “boamente”:
“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor,
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão,
Onde houver discórdia, que eu leve a união,
Onde houver dúvida, que eu leve a fé,
Onde houver erro, que eu leve a verdade,
Onde houver desespero, que eu leve a esperança,
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria,
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais
consolar que ser consolado;
compreender que ser compreendido,
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe
é perdoando que se é perdoado
e é morrendo que se nasce para a vida eterna”.