sábado, 31 de julho de 2010

"No meu barco não há ouro nem prata..."

(Ecl 1,2.2,21-23; Sl 89/90; Cl 3,1-5.9-11; Lc 12,13-21)
Com a celebração deste domingo, as comunidades católicas da Igreja do Brasil abrem o mês vocacional. E a primeira semana nos convida a recordar, aproveitando a memória de São João Maria Vianey (dia 03), a vocação presbiteral. Mas por que não lembrar aqui também a vida-semente de Dom Enrique Angelelli, bispo e profeta argentino, morto no dia 04 de agosto de 1976? Ele dizia que no coração do bispo (e do padre) as alegrias e dores do povo devem encontrar guarida. E escreveu poeticamente um quase-testamento: “Minha vida foi como um riacho... Anunciar o Aleluia aos pobres e aliviar-se no interior. Cantos partilhados com o povo e silênciosos encontros contigo, Senhor...” Uma vida assim esbanjada é loucura ou sabedoria? Precisamos aprender sempre de novo o que significa ser rico aos olhos de Deus.



“Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.”
Qual é a intenção deste anônimo personagem que chama Jesus de ‘mestre’? Depois da discussão sobre a autoridade de Jesus para expulsar demônios, da sua advertência sobre a busca obsessiva de sinais grandiosos e da crítica dura aos fariseus e doutores da lei, “alguém do meio da multidão” pede a Jesus, sem esconder um tom de quem está dando ordens: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.” Este sujeito sem nome faria parte do grupo dos fariseus ou doutores da lei?
De fato, no evangelho de Lucas são sempre as pessoas estranhas a Jesus ou seus adversários declarados que costumam chamá-lo ironicamente ‘mestre’: o fariseu que criticou Jesus por deixar-se beijar pela mulher pecadora (7,40); os familiares de Jairo, cuja filha estava doente (8,49); o pai de um rapaz endomoniado (9,38); o doutor da lei criticado por Jesus (11,45); um homem da elite judaica (18,18); os fariseus (19,39); os espias que queriam denunciá-lo (20,21); os saduceus (29,28); os escribas (20,39).




“Guardai-vos de todo tipo de ganância.”
Parece que, chamando Jesus de mestre, este sujeito não está expressando sua concordância e sua adesão a ele. E Jesus precebe claramente a ironia da saudação e as contradições do demandante, tanto que responde dando a entender que se não é aceito como mestre, também não pode ser buscado como juiz. No fundo, Jesus percebe que esta pessoa, longe de ser alguém necessitado ou um candidato a discípulo, está sendo devorada pela ganância.
E é essa constatação que abre a Jesus a oportunidade para falar da relação com os bens. “Atenção! Guardai-vos contra todo tipo de ganância, pois mesmo que se tenha muitas coisas, a vida não consiste na abundância de bens.” A palavra grega ‘pleonexia’, que a bíblia traduz por ganância, significa literalmente querer sempre mais. Por trás da demanda não está uma necessidade, nem um princípio de justiça, mas a fome insaciável de bens. O desejo é encher o próprio barco de ouro e prata...
Para ilustrar e sublinhar a seriedade da sua afirmação, Jesus propõe uma parábola. O protagonista da história é uma pessoa profundamente ensimesmada. Ele pensa, fala e decide sempre sozinho. Não se interessa por mais ninguém. A linguagem é clara: meus celeiros, meu trigo, meus bens. E diz a si mesmo: “Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe e goza da vida.” Como não lembrar aqui a parábola do rico que festejava indiferente à miséria de Lázaro (Lc 16,19-31)?




“Tolo! Para quem ficará o que acumulaste?”
Nossa cultura considera sábia, prudente inteligente a pessoa que poupa e acumula. Há até quem faça campanha para não dar esmolas, como se o problema do país fossem os pedintes e não os exploradores. Pensar nos outros, lutar com eles, defender seus direitos, parece coisa de doido, de quem não tem o que fazer ou de quem está mal intencionado. É verdade que alguns milionários hoje até ousam fazer caridade e têm suas fundações, mas o modelo seguido é mesmo o homem da parábola.
Jesus diz aos olhos de Deus as que pessoas que agem assim são absolutamente tolas, desprovidas de qualquer resquício de razão, vazias de qualquer valor humano, modelos que devem ser descartados como dignos de riso. São pessoas que, com suas decisões, cavam abismos que os separam dos simples humanos. E acabam cavando também a própria ruína, pois são humanamente tão pobres que só tém dinheiro... Perderam ou venderam barato tudo o mais.




“Buscai as coisas do alto...”
Mas se o acúmulo indiscriminado de bens é doidice e pobreza humana, o que significa ‘ser rico diante de Deus’? Está claro que para Jesus o problema não está nos bens em si mesmos. Ele não é um asceta que acha que as coisas materiais são intrinsecamente más. Ele mesmo gostava de gastar uns trocados com boas festas para se confraternizar com os marginalizados. O mal dos bens está no obstáculo que eles podem representar para a liberdade radical e para o engajamento no movimento do Reino de Deus.
Se não colocamos o ensinamento de Jesus no devido lugar, podemos resvalar para a ironia e para o cinismo daqueles que pregam moral de calça curta, que ensinam aos pobres a não se preocuparem com comida e roupas. Os pobres não podem ficar olhando os corvos e os lírios, pois não lhes resta senão trabalhar, mesmo percebendo que são outros os que ficam com os bens que produzem. A questão fundamental está em reconhecer o que realmente vale e tem prioridade sobre tudo: o Reino de Deus.
O Reino de Deus é a pérola preciosa e o tesouro valioso que vale tudo o que temos e o que sonhamos, pois não é o armazém que falta aos que aumentaram a produção, nem a aplicação vantajosa oferecida àqueles que têm mais do que necessitam: é o terreno no qual brota o trigo abundante que vai para a mesa dos pobres e não para os armazéns privados; é a carta constitucional que garante todos os direitos humanos a todas as pessoas; é o ventre no qual é gerada uma nova humanidade.




“Vos revestistes do homem novo.”
Podemos simplesmente apresentar os padres como modelo imitável daqueles que, vencendo a irrascível ganância, fizeram a escolha certa e tecera bolsas que não se estragam, ou, para usar a expressão de Paulo, se tornaram homens novos? A memória dos episódios evangélicos dos dois últimos domingos pede precaução e nos ensina a não responder apressadamente que sim. Marta representa os ministros que se sentem chefes, se preocupam com muitas coisas e querem mandar inclusive em Jesus.
O que é certo é que o ministério presbiteral parte da descoberta de um chamado, e isso supõe uma abertura que não encontramos no protagonista da parábola: este só escuta a voz dos próprios interesses e ambições, dialoga apenas consigo mesmo; é literalmente um homem fechado a qualquer chamado que venha de fora e, especialmente, daqueles que estão nas bases da história e fora do clube dos bem-sucedidos. O padre é chamado a ser um ministro, servo dos outros, e não senhor de si mesmo.
Tanto São João Maria Vianey como Enrique Angeleli mostram com a vida o que significa escolher a melhor parte, ser rico aos olhos de Deus, fazer bolsas que não se estragam, buscar apenas e sempre o Reino de Deus e sua justiça. Lutando permanentemente contra a ambição que pode corroer por dentro, eles colaboram para que os bens circulassem e servissem ao bem de todos, abriram o coração para acolher as alegrias e tristezas de todos os humanos seres e assim revelaram onde estava seu coração.




“Ensina-nos a contar os nossos dias...”
Assim, a vocação presbiteral, quando vivida com empenho e pessoal e com autenticidade, presta um grande serviço a todo o povo de Deus: revela que todas as formas de vida cristã – a vida clerical, a vida consagrada e a vida laical – têm uma irrenunciável dimensão de serviço aos irmãos e irmãs. Mas esta vocação específica só conseguirá cumprir bem sua missão se souber confrontar-se permanentemente com a pessoa de Jesus e seu Evangelho, se se deixar revestir do novo homem revelado em Jesus.
Esta é também a sabedoria que todos desejamos e necessitamos: a capacidade de avaliar corretamente o valor de todas as coisas, tanto os bens econômicos como os cargos e as funções, assim como o tempo histórico que vivemos. O salmista lembra que aos olhos de Deus mil anos podem representar menos que o dia de ontem, e que o aparente vigor da nossa vida é enganoso e nós podemos murchar e desaparecer na tarde que se aproxima. Precisamos aprender a contar bem os nossos dias!
E contar bem os nossos dias significa também colocar os bens econômicos no seu devido lugar. Um projeto de vida fundamentado no acúmulo sem limites não tem fundamento. A ganância desmedida pode nos levar a devorar a natureza, a sacrificar amigos/as e familiares, a desorientar ou esterilizar a fé e, enfim, a perder a dimensão de gratuidade e solidariedade. É uma bolsa roída pelas traças...
Pe. Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Qual é a única coisa realmente boa e indispensável?

(Gn 18,1-10; Sl 14/15; Cl 1,24-28; Lc 10,38-42)(18 de julho 2010)
O fato aconteceu há 25 anos atráas, mas lembro-me perfeitamente do rosto do Gilberto, um homem humilde que trabalhava como gari e fazia uns bicos nos fins de semana para melhorar seus parcos recursos e atender as necessidades da família, inclusive de um filho portador de necessidades especiais. Sendo membro de uma Igreja cristã e pressionado pelo pastor para não trabalhar aos domingos, ele me perguntava ansiosamente, e sua pergunta escondia já a resposta: o que é mais de acordo com Jesus, descansar e ir ao culto ou atender as necessidades do meu filho? Frequentemente a preocupação com as muitas leis – das religiões ou do mercado – nos induzem a esquecer aquilo que é imprescindível: ser aprendiz de Jesus na sua absolutamente prioritária compaixão pela humanidade ferida.

“E uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa...”
Para entender corretamente o ensino de Jesus transmitido por Lucas no evangelho de hoje precisamos inicialmente demarcar o terreno e limpar a área. Demarcar o terreno significa colocar a cena no se contexto literário: o episódio ocorre depois da parábola do bom samaritano, enquanto Jesus percorre decididamente o caminho que o leva ao confronto martirial em Jerusalém. E esta estrada é propriamente a escola na qual Jesus dá as lições essenciais aos que o seguem.
Depois da experiência missionária pouco frutífera dos Doze e do êxito apostólico dos 72 discípulos enviados à sua frente o próprio Jesus segue o princípio de entrar nas casas, pedir hospedagem e aceitar aquilo que lhe oferecem para comer. Deixando a estrada, que é parábola da abertura e da inventividade, Jesus entra numa cidade, símbolo de fechamento ideológico. A mulher que o recebe em sua casa é chefe de família e seu nome significa literalmente ‘patroa’.
Mas precisamos também limpar o terreno de algumas interpretações que se tornaram tradicionais, especialmente as que vão em duas direções: aquelas que procuram ver no episódio a afirmação da superioridade da vida contemplativa sobre a vida apostólica; aquelas que se proõem a corrigir Jesus, afirmando que precisamos conjugar a atitude de Maria com a postura de Marta. Ambas relativizam o contexto literário e esquecem elementos essencias do texto.
“Tu te preocupas e andas agitada com muitas coisas.”
Temos muitas preocupações que agitam nossa mente e nosso coração. Nem todas justificáveis evangelicamente. Devemos dizer logo de início de que não se trata das preocupações com o atendimento às necessidades dos irmãos e irmãs. Jesus deixa suficientemente claro que é no socorro e atendimento às pessoas necessitadas que nós servimos a Deus. O belo edificante episódio de Abraão à sombra do carvalho de Mambré antecipa este ensinamento.
O problema é a razão e a origem da agitação. No episódio narrado por Lucas, parece que o que provoca a agitação de Marta, mais que os deveres de hospitalidade, são dois fatores: a necessidade de cumprir o código de leis que o judaísmo impunha aos fiéis e que acabava afastando-os da compaixão e da misericórdia (cf. Lc 10,25-37); o poder de governar a casa e o desejo de e controlar perfeitamente a própria vida, garantir a satisfação dos desejos e acumular riquezas (cf. Lc 8,14; 12,24-34).
Hoje os homens que detém autoridade nas Igrejas são agitados pelo monte de leis e ordens que regem sua vida pessoal e o culto, assim como pela necessidade de agradar os superiores e garantir uma carreira ascendente. E os homens e mulheres imersos na sociedade e embebidos da cultura dominante são atordoados pelas leis da concorrência e pela inexorabilidade da exclusão: correm cada vez mais e conseguem cada vez menos. E tanto uns como outros eliminam a compaixão do horizonte da vida.
“Senhor, não tem importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço?”
A agitação e a preocupação em dominar as situações podem levar ao excesso de querer corrigir o Evangelho e dar ordens ao próprio Jesus. É isso que a narração de Lucas explicita de um modo pouco discreto. Ciosa de sua posição de autoridade, Marta toma a frente e se dirige a Jesus com palavras ousadas: “Senhor, não tem importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda, pois que ela venha me ajudar.” Sente-se com autoridade para advertir Jesus e dar-lhe ordens!
Esta atitude surpreendente me faz lembrar aquilo que Kiko Arguelas (fundador do Movimento Neo-Catecumenal) gosta de repetir ambiguamente: o Espírito Santo obedece aos Bispos! Certamente ele dá um sentido muito específico a esta afirmação, mas o fato é que muitas figuras eclesitásticas parecem agir como quem tem autoridade sobre o povo cristão, sobre a sociedade civil e sobre o próprio Deus. E isso os agita de tal maneira que se dispensam de frequentar a escola do Evangelho.
“No entanto, uma só coisa é necessária.”
O único bem necessário é sentar-se diante de Jesus como quem aprende e seguir seus passos com a disposição de partilhar seu destino. A oposição não está entre escutar-aprender-celebrar e servir-lutar-transformar, mas entre o amor ativo ao próximo e o cumprimento automático de ordens e imposições que nos afastam deste núcleo da vida cristã. Em outras palavras: não é possível conjugar o seguimento de Jesus com a busca do sucesso individual a qualquer custo e com o culto desligado da vida.
A escuta da Palavra viva de Jesus Cristo é condição para um ministério apostólico eficaz. Enquanto Marta faz aquilo que é aparentemente mais seguro, urgente e eficaz, Maria faz o que é mais fundamental e importante. Sublinhando a retidão da escolha de Maria, Jesus dá a entender que o lugar das mulheres na Igreja não se resume em assumir tarefas menos importantes das quais os homens que detém autoridade se sentem dispensados. O lugar delas é o comum a todos os cristãos: o discipulado.
“Maria escolheu a melhor parte.”
Maria faz a única coisa que é correta e boa do ponto de vista do Evangelho. Algumas traduções amenizam a afirmação de Jesus e usam a expressão “a melhor parte”. Entretanto, Jesus fala que “uma só coisa é necessária” e que Maria “escolheu a parte boa e esta não lhe será tirada”. Este não é um elogio à passividade mas uma outra forma de afirmar aquilo que bom samaritano fez na parábola que Jesus acabara de contar, enquanto o sacerdote e o levita se preocupavam com muitas coisas.
Assim, a única coisa necessária, a atitude que expressa e potencializa o dinamismo de uma vida terna e eterna, é o amor ou obediência a Deus conjugado com a compaixão ativa e solidária pela pessoa humana, especialmente por quem está em situação de vulnerabilidade. É isso que precisamos aprender e reaprender sempre de novo aos pés de Jesus, deixando de lado um punhado de outras coisas que, com sua aparente urgência e eficácia, não fazem outra coisa que provocar agitação e badalação.
Para que serve a infinidade de leis canônicas, rubricas litúrgicas e normas disciplinares para ministros ordenados ou não se não ajudam a renovar e consolidar a escolha fundamental? E quais são os frutos da obediência cega e indolente às nefastas leis do mercado, que reivindicam um indefinido ‘regime de legalidade’? Bartolomeu de las Casas (+17.07.1756), assim como Maria Madalena (cuja festa é celebrada dia 21), nos lembram o que significa escolher a parte boa e não se agitar com muitas coisas.

“Completo em minha carne o que falta o que falta às tribulações de Cristo...”
Na carta aos Colossenses, Paulo diz de forma paradoxal que se alegra nos sofirmentos que enfrenta por causa da comunidade. E prossegue com ousadia: “Completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja.” E isso porque, acolhendo o ministério que Deus lhe confiou, Paulo se fez servidor da Igreja e se desdobra para que a Palavra de Deus chgue efetivamente a ela. Aqueles/as que ousam sentar-se aos pés de Jesus acabam indo onde vão estes pés...
Isso não quer dizer que Jesus e Paulo propõem o sofrimento como caminho de santificação. Mas aderir a Jesus Cristo e fazer-se próximo dos últimos, jogando no lixo os aparentemente sábios mandamentos ditados pelas insitutições fechadas em si mesmas e submissas à lei de levar vantagem e alcançar o sucesso, implica em contar com a possibilidade de sofrer na própria carne a oposição e as agressões vindas de quem não aceita mudança alguma, nem mesmo do coração.
Jesus responde a seu modo à pergunta do salmista: “Quem pode, Senhor, habitar na tua tenda?” São aqueles/as que sentam aos seus pés como aprendizes e seguem um Mestre que não tem onde reclinar a cabeça. Estas pessoas descobrem o verdadeiro tesouro que vale uma vida, transformam-se em moradas da divindade e da humanidade num mundo que perdeu o horizonte. E falam e vivem com autoridade!
Pe. Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Compaixão resgata a humanidade e tem forç de eternidade

(Dt 30,10-14; Sl 18/19; Cl 1,15-20; Lc 10,25-37)
O Verbo de Deus não cessa de fazer-se carne, mas nós estamos sempre às voltas com a tentação de menosprezar a carne em nome de substantivos e adjetivos. O essencial da vida cristã, mesmo sendo exigente, não é complicado, não se esconde em difíceis fórnulas ou teoremas. Mas precisamos nos livrar da mania dos especialistas: de sempre levantar novas perguntas, de acrescentar novos pontos na discussão já esgotada, de formular conceitos que nos mantêm soberanamente inativos e indiferentes. Esquecemos que Deus ama a terra e a humana carne e preferimos levantar questões sobre a vida eterna. Ignoramos que a ação é a melhor manifestação da vida e agarramo-nos a conceitos que classificam e hierarquizam, desqualificando

o Evangelho e sentindo-nos plenamente justificados.
“Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus...”
Muitas perguntas que fazemos não passam de estratégias para desviar da questão central. Jesus acabara de enviar os discípulos e discípulas – muitos de origem samaritana – em missão e de recebê-los de volta, com o coração cheio de alegria e de novidades para partilhar. Eles haviam anunciado a proximidade do Reino de Deus, curarado doentes, recontruido a paz; hospedaram-se nas casas de pessoas desprezadas e sentaram-se à mesa com elas. Para as pessoas muito religiosas, tudo isso parecia ser coisas demasiadamente corporais, materiais e terrenas.
Entre decepcionado e escandalizado, um doutor da Lei procura testar a ortodoxia de Jesus e recolocá-lo nos trilhos da verdadeira religião. Com a pergunta pela vida eterna, o teólogo do judaísmo quer afastar Jesus das preocupações com a vida cotidiana das pessoas. Considerando também a passagem de Lucas 18,18-30, parece que são especialmente as pessoas que não querem se comprometer com os irmãos e irmãs que levantam a preocupação pela vida eterna. Como se a religião fosse uma espécie de droga para afastar das dificuldades da vida presente.

“O que devo fazer para herdar a vida eterna?”
Nunca faltam pessoas que reduzem a fé a um corpo de doutrinas. Para elas a essência da fé e da prática da religião se resume em aprender corretamente a doutrina e saber distingui-la das heresias e contrapô-la às fórmulas erradas; praticar corretamente as devoções e ritos prescritos; submeter-se formalmente às autoridades do próprio grupo religioso; manter a reta intenção naquilo que fazem; introduzir o nome de Deus na linguagem cotidiana e imagens sacras nos diversos ambientes.
Sabendo da erudição teológica, da estreiteza de horizontes e da má intenção do doutor da Lei, Jesus não se dá ao trabalho de responder à sua pergunta, e pede que o próprio inquisidor responda, o que ele faz com absoluta precisão: a Lei manda amar a Deus com todo o coração, com toda alma e com toda a força e ao próximo como a si mesmo. Jesus apenas chama a atenção para a dimensão prática desta doutrina: “Respondeste corretamente. Faze isso e viverás.” O segredo da vida está na prática e não na prédica!
Jesus não diz que este é o caminho para assegurar a vida eterna, uma vida suplementar e superior depois ou à margem desta vida, mas simplesmente um caminho de vida. A vida eterna é também vida interna à história e, essencialmente, vida terna. Será que sem ternura e sem compaixão dadas ou recebidas a vida merece este nome? Será que a vida não adquire dinamismo de eternidade exatamente no dom terno, compassivo e solidário de si, na ação de aproximar-se daqueles que estão longe?


“E quem é o meu próximo?”
Com a primeira pergunta o doutor da lei queria testar e provar a ortodoxia de Jesus. Fazendo a segunda pergunta, pretende se justificar. A questão do amor a Deus é mais abstrata, manipulável e pouco mensurável. Mas como o amor ao próximo é mais concreto, as autoridades religiosas discutiam incansavelmente sobre a quem se aplica o apelativo ‘próximo’. E a doutrina oficial praticamente identificava o próximo com quem pertencia ao judaísmo, com os membros do próprio grupo.
Mas por trás da tentativa de justificar a estreiteza do seu mundo e a pouca universalidade do seu amor, o doutor da lei escondia a implícita intenção de recriminar a prática inclusiva de Jesus, pois ele acolhia mulheres pecadoras, curava endemoniados gesarenos e enviava discípulos/as a todos os povos. Como judeu que era, Jesus não deveria reservar o pão do Evangelho aos filhos legítimos do judaísmo e evitar desperdiçá-lo com os pagãos, filhos bastardos e cães?
Esta mesma ideologia mortífera ressoa nas perguntas e acusações dirigidas hoje contra alguns agentes e organizações pastorais da Igreja: por que gastar tempo e dinheiro defendendo os direitos humanos dos homosseuxuais, migrantes e presos, em vez de se dedicar aos homens e mulheres de bem? Por que investir tanto em pastoral social em vez de melhorar o templo e o culto? Faz sentido preocupar-se com o ecumenismo e o diálogo inter-religioso se temos tantos católicos ao nosso redor?


“Um homem descria de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes.”
Jesus evita a discussão teórica sobre o próximo e prefere propor uma situação concreta. Há um homem (não se diz se é judeu o pagão) agredido, caído na estrada, necessitado de socorro. Um sacerdote e um levita passam pelo local, enxergam a pessoa caída. Mas não tomam conhecimento de suas necessidades, afastam-se e seguem o caminho exclusivo da atenção às práticas religiosas e aos códigos legais. Aquele sujeito caído na estrada poderia ser alguém que deixara a santa Jerusalém e abandonara a comunidade de fé...
Mas aparece um homem que vivia na Samaria e que, movido pela compaixão, se aproxima da pessoa ferida e, sem perguntar se é ou não é seu próximo, cuida dos ferimentos, carrega-a no próprio animal e convoca outros a completar o cuidado. Uma pessoa que não vinha do Templo e carregava na própria carne a ferida do desprezo e da exclusão foi capaz de perceber a necessidade e se proximar de uma outra pessoa menosprezada e ignorada. O critério que orientadou sua sua ação não foi a pertença religiosa mas a necessidade humana.

“Qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
A verdadeira questão não é saber quem é nosso próximo, mas de quem nos aproximamos com compaixão. E não se trata apenas de uma pergunta dirigia aos indivíduos, mas também às Igrejas e comunidades cristãs. “Qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” De que tipo de pessoas e situações nossos líderes religiosos e nossas Igrejas se dedicam solidária e compassivamente enquanto caminham na história? Ou os olhos voltados evasivamente ao céu não lhes permitem ver os homens e mulheres assaltados em sua dignidade e caídos por terra?...
Jesus apresenta uma pessoa socialmente excluída e considerada herética como modelo de humanidade e de religiosidade. Para ele, os sacerdotes e levitas, tidos como pessoas exemplares e absolutamente dignas, são rebaixados ao nível de desumanos e reprováveis. Não lhes falta conhecimento nem fidelidade literal às leis. O que eles não têm é a humana compaixão, este dinamismo vital que impulsiona o movimento de aproximação e leva a superar os muros que dividem, esta força que se rege pela critério da necessidade das pessoas concretas e não pelos seus méritos ou pela pertença religiosa.
Assim, qual é o caminho que conduz a uma vida eterna, à maturidade humana, à fé verdadeira? Estão no caminho da vida eterna as pessoas que se comprometem e se fazem próximas daqueles/as que estão abatidos e cansados à beira do caminho, estejam geograficamente perto ou longe. Estão na vida eterna porque estão com Jesus Cristo. “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fisestes” (Mt 25,40). Façamos isso e viveremos eternamente!

“Ele é o primogênito de toda a criação...”
Na carta aos Colossenses, Paulo nos diz que Jesus é o filho primogênito da criação e a cabeça de um corpo formado de discípulos e discípulas. Como irmão mais velho e cabeça da Igreja, ele é a pedra descartada que se transformou em pedra fundamental, o samaritano que se aproxima de todos os seres humanos assaltados, jogados ao chão e olimpicamente ignorados até pelas pessoas religiosas.
Como seu corpo vivo na história, as Igrejas não podem seguir um caminho diferente. Quem aceita ser discípulo/a de Jesus Cristo acaba se cruzando com os lixões onde jazem as pessoas consideradas indignas ou inúteis pelos sistemas guiados pelo poder e pelo lucro. E o segredo de uma vida plena de sentido e de luz está em descer das abstratas montarias doutrinais e fazer-se próximo dessa gente.
Pe. Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 9 de julho de 2010