“Jesus partiu e foi de barca para um lugar afastado...”
Depois de provocar escândalo na sua terra e de saber da prisão e do subsequente martírio de João Batista, Jesus parte para uma região deserta e afastada. Resolutamente, toma distância dos lugares onde o poder mostra sua ferocidade. Ele se recusa a entrar no jogo de cartas marcadas e desposa a periferia. Jesus sente necessidade de respirar outros ares e busca inspiração em utopias mais divinamente enraizadas e mais humanamente concretizadas. Assim o fará durante toda sua curta vida.
Sabendo disso, as multidões cansadas e abatidas deixam as cidades e o seguem à pé. Intuem que é da periferia que pode nascer a novidade. Sabem que os centros de poder são como uma figueira estéril, ou pior, estão pavimentados com o trabalho dos pobres e pintadas com o sangue dos inocentes. Saindo da barca, Jesus vê a multidão e, movido pela compaixão, cura e emancipa muitos pessoas doentes que, poe causa disso, eram dependentes e marginalizadas.
A compaixão não costuma germinar no frio chão dos palácios. Sua força recriadora parece ser filha da fraqueza, e os palácios se sustentam sobre o poder, a prepotência e o medo. Quando as Igrejas aprenderão e levarão a sério esta verdade? O caminho da vida abundante para todos raramente passa pelos palácios. Para ver o povo e resgatar a compaixão ativa e redentora é preciso migrar para as periferias, sair do conforto e da segurança da própria barca, mesmo que seja “a barca de Pedro”...
“Despede as multidões...”
No fim da longa jornada, no entardecer das possibilidades de ajuda, os discípulos percebem a fome do povo e apelam para velhas e inócuas estratégias. Eles não conseguem ver solução para o drama do povo a não ser dentro da lógica do império. Sem um plano alternativo, pedem que Jesus disperse a multidão e cada um supra suas próprias necessidades. Entregam os famintos às frias leis do mercado. Nada mais adequado ao princípio que diz “cada um pra si e Deus por todos”.
A resposta de Jesus é direta e abate mortalmente tanto o espiritualismo escapista como o elitismo corrosivo dos discípulos. “Eles não precisam ir embora. Vocês é que têm de lhes dar de comer.” Longe de Jesus uma Igreja feita apenas de palavras e de ritos religiosos. Longe dele uma comunidade que se compraz em lavar as mãos diante das tragédias que se abatam sobre o povo. Basta de instituições que entregam seus membros à implacável lógica dos impérios!
Os discípulos reagem rapidamente e, tentando disfarçar o egoísmo elitista de quem pensa apenas nos seus direitos e privilégios, sublinham os limites dos recursos disponíveis frente a tão grande demanda. O que representariam cinco pães e dois peixes para uma multidão de dez mil famintos? “Tragam isso aqui”, determina o Mestre. “O pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada”, ensina a sabedoria popular. O Reino dos céus é a universalização do acesso ao bem viver, a uma vida realmente boa.
De repente o mundo parece ter acordado para a escassez de alimentos e a ONU convocou e realizou atravès da FAO (em 2008) uma conferência urgente para discutir a questão e traçar soluções. Mas os países do norte rico se recusam a tirar a venda dos olhos e reconhecer as verdadeiras causas da emergência. São eles mesmos que, por mecanismos diversos e perversos travestidos de leis e acordos, subtraem da mesa do povo dos países pobres o alimento por eles mesmo produzido.
É verdade que nos últimos 40 anos a população da humanidade duplicou. Mas a produção de alimentos triplicou!... E se a fome vem crescendo, onde foi parar o excedente? Soa como cínica, para não dizer diabólica, a proposta de resolver a fome dos pobres com a aprovação dos transgênicos. O resultado não seria o acesso aos alimentos, mas a subordinação da produção alimentar à padronização e às leis do mercado, o que impediria ou destruiria a soberania e a segurança alimentar dos povos.
É preciso denunciar, como o fez com coragem a Santa Sé, os pífios resultados e as inócuas propostas da referida conferência. Sem romper e reverter a lógica do lucro e do controle dos alimentos por algumas poucas empresas multinacionais não há solução viável para a fome no mundo. E é preciso reverter prioridades! Em 2007 o mundo gastou em armamento 1,34 bilhões de dólares ($ 202,00/habitante), 190 vezes o montante pedido pela FAO para combater a fome no mundo!
A saída não é nem cada um pra si, nem considerar povo faminto um simples objeto de caridade. Do ponto de vista do Evangelho, povo é soberano e as autoridades estão a seu serviço. E não se trata de povos nacionais mas de um único povo, pois para os cristãos as nações modernas são realidades fictícias e, às vezes, violentas, cujos confins foram traçados com lanças e baionetas. Não é cristão um amor que se preocupa apenas com a vida dos conacionais.
A solução para esta crise sistêmica não está ao alcance de um país ou de uma Igreja particular. A ordem “dêem vocês mesmos de comer” começa com a adoção de um consumo moderado pelos povos ricos e com a erradicação da exploração comercial dos países ricos sobre os pobres. Eles não precisam dar de comer: basta que não expropriem dos países pobres aquilo que lhes pertence por direito e não lhes imponham receitas econômicas mortíferas e padrões de consumo insustentáveis.
Eis aqui uma missão irrenunciável das Igrejas cristãs e de cada discípula/o de Jesus: estabelecer e defender a soberania alimentar dos povos; exigir dos organismos multilaterais medidas concretas que possibilitem a toda a humanidade comer com dignidade, até à saciedade. Essa não é de modo algum uma tarefa estranha à fé. Que ninguém seja surpreendido pela declaração: “Afastem-se de mim, malditos, porque eu estava com fome e vocês não me deram de comer...”
O profeta Isaías, com uma mensagem que muitos hoje chamariam de romântica e irresponsável, conclama todas as pessoas que têm sede e fome e não têm dinheiro a comer e beber sem pagar. E olha que não se trata de apenas pão e água: o convite se estende ao leite e ao vinho! Haverá alimento suficiente se a humanidade entender que o caminho é a aliança de povos livres e não a dominação do mais forte, e se compreender que viver bem não é ter ou consumir muito, mas limitar as necessidades.
O alimento suficiente para saciar os que têm fome – e para encher muitos cestos para os que ainda virão – aparece quando Jesus assume o protagonismo e os discípulos se associam à sua ação. Se ele deixasse a solução às leis do mercado teríamos assistido à catástrofe de um povo, ao cinismo da religião e ao enriquecimento dos astutos. Valeu a chamada dos discípulos à prática daquilo que haviam escutado com admiração no sermão da montanha e nas parábolas do Reino...
O Espírito nos conduz do pão eucarístico ao pão para os famintos; da mesa da comunhão com Jesus Cristo à aliança com os oprimidos; do pão recebido à vida doada. Nada poderá nos separar do amor de Cristo e impedir que colaboremos com sua missão de devolver a dingidade aos homens e mulheres. Se Deus abre a mão e sacia o desejo de todo ser vivo, quem somos nós para fechar egoísticamente as mãos ou mantê-las sempre unidas em oração, como cínica desculpa para fugir da ação transformadora?
Deus, pai justo e mãe compassiva, tu queres que ninguém fique fora da festa da vida, e que nossa felicidade não esteja no aumento de propriedades mas na redução das necessidades: suscita e sustenta em nós a mesma compaixão que moveu Jesus na cura dos doentes, na acolhida dos marginalizados, na libertação dos oprimidos e no socorro aos famintos. Ensina às nossas comunidades a responsabilidade de ensaiar formas de vida mais sóbrias e solidárias. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf