A vida é uma travessia e viver é caminhar. As travessias constumam ser perigosas e assustam. Há quem prefira evitá-las sempre, pois pensam que o risco do mar revolto não compensa. São pessoas que fecham os ouvidos a todo todo e qualquer chamado; padres que desempenham sua missão pastoral como uma atividade qualquer ou até como uma carreira; pais que se recusam a avançar na tarefa de repensar a forma de realizar essa exigente missão; fiéis que preferem as velhas e potentes imagens de Deus ao desafio de descobri-lo na brisa leve da luta pela justiça. Iniciando o mês vocacional e celebrando a vocação presbiteral, coloquemo-nos à escuta do Senhor e acolhamos a palavra que o velho e experimentado Pedro dirige aos presbíteros: “Cuidem do rebanho de Deus que lhes foi confiado, não por imposição, mas por livre e espontânea vontade, como Deus o quer, não por causa de lucro sujo, mas com generosidade; não como donos, mas como modelos para o rebanho” (1Pe 5,2-3),
“Sai e permanece sobre o monte, diante do Senhor.”
Os discípulos imaginavam um Deus indiferente às necessidades dos famintos ou suficientemente poderoso para resolver sozinho todas as dificuldades do povo. É a imagem de Deus que predomina nas diversas religiões. Mas Jesus revela-se um Deus compassivo com os pobres, um Deus que tem necessidade da nossa colaboração – nem que seja apenas cinco pães e dois peixes! – na sua ação libertadora. Ele nos convida a superar o medo e confiar na sua presença em todas as travessias.
Deus continua se manifestando aos que nele esperam. Ele não exclui nenhum lugar, mesmo os mais imporváveis. Deus se faz ativamente presente nos desertos que atravessamos hoje: na travessia noturna dos mares ameaçadores de um mundo que globaliza a exploração e ergue muros contra os migrantes; nas cavernas onde nos escondemos para fugir da profecia; na brisa suave da ternura das mãos que se estendem e dos corpos que se encontram.
A revelação de Deus pode ser percebida mais claramente nos movimentos de passagem: do Egito para a terra prometida; do centro para a periferia; da auto-suficiência para a entre-ajuda; do eu para o nós; da aparente segurança das cavernas para o descampado estimulante da montanha; do poder para o serviço; do peso das estruturas eclesiásticas para a leveza e a criatividade do Espírito. Parece que Deus não gosta de se estabelecer. Agrada-lhe mais o movimento que os templos.
“E gritaram de medo...”
As imagens de um Deus poderoso e ameaçador ainda não se apagaram da nossa memória. Ensinaram-nos que Deus se revela no poder destruidor dos terremotos, no fogo devorador das ideologias totalitárias, no mistério aterrador dos furacões, nos pesados decretos que comendam, na dura punição aos que erram. Deus seria onipotente, onisciente e onipresente, e quanto mais poder ou saber alguém possui, mais se pareceria com ele...
Diante de um Deus com estas características, caímos por terra ou gritamos de medo. E do ventre do medo não costuma nascer o amor que se faz dom mas a agressividade da autodefesa ou da dominação. Um Deus com tais traços é um fantasma, uma fantasia que se abriga nas pessoas que não superaram o desejo infantil de onipotência. E este fantasma, via de regra, está a serviço das diversas formas de dominação e de infantilização religiosa, econômica e política.
Como deixa claro o episódio de Pedro, o qual não escondeu seu desejo de participar da presumida onipotência de Deus e de caminhar sobre o mar, este desejo vem sempre ameaçado pelo medo. E é exatamente o medo dos ventos contrários e das diferenças que gera a dúvida e nos leva a afundar, tanto em termos humanos como espirituais. Isso soa como uma advertência aos padres, sempre tentados pelo sentimento de superioridade e pela vontade de vagar por cima da condição humana.
“Ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa...”
Elias debateu-se contra a visão de um Deus que se revela no poder e na ameaça. Ele teve que sair desta espécie de gruta fechada e se expor à suavidade da brisa para experimentar o verdadeiro rosto de Deus: um Deus que se manifesta como nuvem que ilumina os caminhantes na noite e os protege do sol durante o dia; que ouve o grito dos oprimidos se compadece dos famintos e humilhados; que se mostra mais como amor que como poder, mais como humilde sábio que como doutor.
O medo não nasce da verdadeira experiência de Deus, mas de uma imagem parcial ou confusa de Deus. É isso que vemos na história dos discípulos que deveriam atravessar o mar. A força do vento e das ondas que fustiga a barca como a tirania dos poderosos, somada à idéia de um Deus que caminha sereno e indiferente sobre as ondas, arranca-lhes gritos de pavor. E a dúvida sobre a divindade de um Jesus frágil e compassivo leva Pedro a afundar apavorado.
A experiência de Deus gera paz porque sua glória é sua infinita compaixão. Nele a Verdade se encontra com a Misericórdia e a Paz abraça e beija a Justiça. A Justiça faz a vez de caravana de batedores que o precede, e a Libertação ocupa o lugar do séquito que lhe presta homenagem. Deus não se manifesta no vento que ameaça; sua presença é sensível na calmaria. Ele é como um padre/pastor, cuja autoridade reside na mão estendida para orientar, proteger, sustentar e ajudar.
“Misericórdia e Verdade se encontram...”
Desde o inicio do seu ministério, o Papa Bento XVI vem enquandrando suas reflexões e propostas pastorais no conceito de Verdade. Numa das meditações sobre a vocação presbiteral, inspirado no capítulo 17 do evangelho segundo João, ele fala do padre como homem consagrado na Verdade e a serviço da Verdade. É uma bela perspectiva, mas comporta o risco de identificar muito facilmente a doutrina da Igreja com a Verdade eterna e a pregação do padre com a doutrina da Igreja.
Mas Bento XVI propõe prudentemente: “A nossa vida torna-se autêntica, verdadeira e também eterna, se conhecermos Aquele que é a fonte de todo o ser e de toda a vida. Assim a palavra de Jesus torna-se para nós convite: tornemo-nos amigos de Jesus, procuremos conhecê-Lo cada vez mais! Vivamos em diálogo com Ele! Aprendamos d’Ele a vida reta, tornemo-nos suas testemunhas! Tornar-nos-emos assim pessoas que amam e agiremos de modo justo. Então viveremos verdadeiramente.”
Além disso, na linha do Salmo 84/85, lembremos que, na perspectiva da ação de Deus que os padres são chamados e mediar, “misericórdia e verdade se encontram, justiça e paz se abraçam”. Aqui não há lugar para um sacerdócio que coloca a fria justiça à frente d a paz condescendente ou dá prioridade à firme verdade doutrinal em detrimento de um relacionamento essencialmente misericordioso. Na vida do padre-pastor, misercórdia e verdade, paz e justiça devem andar de mãos dadas.
“Homem de pouca fé, por que duvidastes?”
Jesus insistiu muito na relação profunda entre a imagem de Deus e a figura do pastor. Podemos até dizer que a missão essencial de Jesus consistiu em revelar os traços de um Deus que age como um pai e como um pastor bom e generoso. Inversamente, podemos dizer que aos padres e pastores cabe a grave tarefa de ser uma espécie de sacramento de Deus para a comunidade de fé da qual ele mesmo é membro, de tornar visível e palpável a compaixão de Deus na terra.
Paulo lamenta que seus irmãos de raça e sangue tenham se apegado às leis, à religião, às instituições e às promessas como se fossem um privilégio que os colocam acima dos demais seres humanos e fora das peripécias e exigências da história. A filiação é um dom que carregamos como tesouro em um vaso de barro. Nem todos aqueles/as que ostentam o título de cristãos o são de fato. E, infelizmente, nem todos aqueles que se fazem chamar de padres e pastores o são realmente e em profundidade...
Deus, pai e mãe, presença amorosa e encorajadora em todas as humanas travessias: te pedimos hoje por estes homens que chamas para perto de ti, formas segundo o teu coração e colocas como pastores em meio ao teu rebanho. Tu conheces a generosidade e a ambiguidade, a coragem e o medo de cada um de nós. A tentação continua nos levando a te procurar no fogo, no terremoto, na ventania. Vem ao nosso encontro como calmaria! Socorre nossa pouca fé e cura as dúvidas do nosso coração e os desvios do nosso afeto. Ensina-nos a cuidar do rebanho que é teu, colocando-nos no meio dele e guiando-o como modelos de vida, e não como patrões e senhores. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf