“Todos/as nós, de diversos modos, procuramos uma vida pura e imaculada diante de Deus e dos irmãos e irmãs. Para realizar este desejo ou obrigação que nos impomos, recorremos às práticas religiosas, aos terapeutas, aos médicos, aos guias espirituais, e assim por diante. Mas nem sempre conseguimos nos livrar da tentação de construir somente uma aparência de integridade ou de garantir uma pureza que é mais distanciamento dos/as nossos/as semelhantes que amor e compaixão. Como se o mais característico em Deus fosse o medo que leva ao distanciamento e a não se misturar com as misérias e contradições humanas. O papel das religiões não pode ser esse de nos afastar hipocritamente das lutas e necessidades dos nossos irmãos. Tiago contundente: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição e manter-se livre da corrupção do mundo.”
“Seguem a tradição que receberam dos antigos...”
Escrevo estas linhas – sacramento de partilha e comunhão na fé e na esperança – no silêncio eloqüente e sugestivo dos Alpes franceses, neste lugar abençoado no qual Nossa Senhora se manifestou a duas crianças. Aqui nas montanhas de La Salette Maria nos revela, em seu próprio rosto lavado por lágrimas de compaixão, a beleza e a bondade de Deus. Sus lágrimas lembram as lágrimas de Jesus diante da morte de seu amigo Lázaro ou diante de uma Jerusalém que recusa se converter.
Por mais que uma certa mentalidade tenha interpretado a mensagem de Nossa Senhora da Salette como ameaça de castigo, o brilho que se nasce e se expande a partir da cruz que ela traz no peito nos lembra da fidelidade de Deus, o qual mantém sua compaixão de geração em geração e não abandona seu povo, apesar dos seus pecados. Mas é propriamente esta fidelidade de Deus que também nos interpela a assumir nossa responsabilidade pelos males que ferem a humanidade e a mudar nossos pensamentos, opções e prioridades de vida.
E um dos primeiros passos neste caminho é romper com algumas tradições: a ilusão de que a fé pode ser vivida sem ligação com a vida concreta; a mania de ‘tirar o corpo fora’ e pedir que Deus mude o mundo milagrosamente, sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar publicamente uma correção e uma autenticidade que não vão além da própria pele; o mito que afirma que a única saída é cada um/a cuidar de si mesmo/a.
“Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade...”
São Tiago nos recorda que todo bem nos vem do Pai das luzes, e ele não tem fases ou períodos de mudança. O amor manifestado em Jesus crucificado não muda, mas não muda também o amor como único caminho possível para um outro mundo. “Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas criaturas.” O batismo expressa este novo nascimento, esta vocação de sermos os/as primeiros/as que vivem o amor como princípio, como meio e como fim.
Quando falamos de amor não estamos nos referindo a um vago sentimento interior, mas a um dinamismo que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se de reconhecer os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender suas necessidades. E isso comporta decisões e ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, de envolver-se em lutas, de compartilhar sofrimentos e humilhações.
É lamentável ver que inda hoje alguns cristãos, inclusive religiosos/as e padres, estejam preocupados com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se aproximam da eucaristia e sequer se incomodam com as fraturas, divisões e injustiças que ferem o corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados/as e excluídos/as da mesa da vida. Priorizam a limpeza das toalhas, patenas e cálices e não se importam com as atitudes verdadeiramente anti-evangélicas.
“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos?”
Não se trata de acrescentar leis e doutrinas aos muitos fardos que os filhos e filhas de Deus já carregam sobre as costas. Deus não se compraz em escrever doutrinas e tratados jurídicos ou morais mas quer propor uma via que garanta a todos/as liberdade e vida plena. Ele propõe uma prática concreta para que todos/as vivam bem na terra que criou para eles/as. Ele faz questão de mostrar-se um Deus próximo e defensor dos últimos. “De fato, que grande nação tem um Deus tão próximo, como Javé nosso Deus, todas as vezes que o invocamos?”
O problema está na tendência de transformar as propostas que conduzem a uma vida livre em leis que garantem privilégios. A aliança tinha mandamentos sim, mas seu objetivo era evitar posturas egoístas e fechadas. “Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes proponho hoje?” Eram justas porque tinham como objetivo ajudar a conquistar a terra e a viver nela de forma solidária.
Mas a lei que os legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos discípulos era bem outra coisa. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão sem lavar as mãos?” Não lhes interessava a partilha dos pães e peixes que alimentara uma multidão, mas o fato de que os discípulos e todo o povo tinham comido sem lavar as mãos.
“Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
A verdade é que alguns costumes irrelevantes vão conquistando uma importância cada vez maior e acabam aparecendo à consciência como expressões da vontade de Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão ou não. E quanta polêmica em torno da prática de leigos e leigas proclamar o Evangelho numa celebração eucarística. E sem falar na questão da comunhão aos casais separados ou recasados...
Quanto esforço para filtrar um mosquito sem perceber que estamos engolindo dezenas de camelos. Quanto esforço para limpar as coisas por fora sem olhar para o que é mais importante. Quantos costumes pouco importantes são alçados ao patamar de lei de Deus. “Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
Jesus estabelece um princípio que orienta nosso discernimento: “O que vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura.” O que nos diminui ou torna sujos não é nossa condição social, nosso pouco estudo ou nossos poucos recursos, mas as ações e decisões que tomamos.
“É de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções...”
Então não se trata de maquiar a realidade ou de manter as aparências, mas de purificar nossa percepção e nossos interesses. “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultério, ambições sem limites, maldades, malícia, devassidão, inveja, cobiça, orgulho, falta de juízo...” E poderíamos completar a lista por nossa própria conta. É aqui que deve se concentrar toda nossa atenção.
Como não lembrar aqui a figura grandiosa e delicada de Dom Helder Câmara, cujos 10 anos de morte recordamos na ultima quinta-feira? Poucas pessoas conseguiram descer ao fundo dos labirintos do coração humano e compreender seus mistérios como ele. Poucas figuras religiosas conseguiram conjugar tão bem quanto ele doçura e firmeza. Poucas autoridades eclesiásticas conseguiram relativizar com tanta liberdade as tradições humanas em nome do Evangelho como fez este santo. Oxalá consigamos viver como ele a religião pura e verdadeira: socorrer os pobres e oprimidos em suas necessidades.
Pe. Itacir Brassiani msf
“Seguem a tradição que receberam dos antigos...”
Escrevo estas linhas – sacramento de partilha e comunhão na fé e na esperança – no silêncio eloqüente e sugestivo dos Alpes franceses, neste lugar abençoado no qual Nossa Senhora se manifestou a duas crianças. Aqui nas montanhas de La Salette Maria nos revela, em seu próprio rosto lavado por lágrimas de compaixão, a beleza e a bondade de Deus. Sus lágrimas lembram as lágrimas de Jesus diante da morte de seu amigo Lázaro ou diante de uma Jerusalém que recusa se converter.
Por mais que uma certa mentalidade tenha interpretado a mensagem de Nossa Senhora da Salette como ameaça de castigo, o brilho que se nasce e se expande a partir da cruz que ela traz no peito nos lembra da fidelidade de Deus, o qual mantém sua compaixão de geração em geração e não abandona seu povo, apesar dos seus pecados. Mas é propriamente esta fidelidade de Deus que também nos interpela a assumir nossa responsabilidade pelos males que ferem a humanidade e a mudar nossos pensamentos, opções e prioridades de vida.
E um dos primeiros passos neste caminho é romper com algumas tradições: a ilusão de que a fé pode ser vivida sem ligação com a vida concreta; a mania de ‘tirar o corpo fora’ e pedir que Deus mude o mundo milagrosamente, sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar publicamente uma correção e uma autenticidade que não vão além da própria pele; o mito que afirma que a única saída é cada um/a cuidar de si mesmo/a.
“Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade...”
São Tiago nos recorda que todo bem nos vem do Pai das luzes, e ele não tem fases ou períodos de mudança. O amor manifestado em Jesus crucificado não muda, mas não muda também o amor como único caminho possível para um outro mundo. “Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas criaturas.” O batismo expressa este novo nascimento, esta vocação de sermos os/as primeiros/as que vivem o amor como princípio, como meio e como fim.
Quando falamos de amor não estamos nos referindo a um vago sentimento interior, mas a um dinamismo que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se de reconhecer os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender suas necessidades. E isso comporta decisões e ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, de envolver-se em lutas, de compartilhar sofrimentos e humilhações.
É lamentável ver que inda hoje alguns cristãos, inclusive religiosos/as e padres, estejam preocupados com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se aproximam da eucaristia e sequer se incomodam com as fraturas, divisões e injustiças que ferem o corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados/as e excluídos/as da mesa da vida. Priorizam a limpeza das toalhas, patenas e cálices e não se importam com as atitudes verdadeiramente anti-evangélicas.
“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos?”
Não se trata de acrescentar leis e doutrinas aos muitos fardos que os filhos e filhas de Deus já carregam sobre as costas. Deus não se compraz em escrever doutrinas e tratados jurídicos ou morais mas quer propor uma via que garanta a todos/as liberdade e vida plena. Ele propõe uma prática concreta para que todos/as vivam bem na terra que criou para eles/as. Ele faz questão de mostrar-se um Deus próximo e defensor dos últimos. “De fato, que grande nação tem um Deus tão próximo, como Javé nosso Deus, todas as vezes que o invocamos?”
O problema está na tendência de transformar as propostas que conduzem a uma vida livre em leis que garantem privilégios. A aliança tinha mandamentos sim, mas seu objetivo era evitar posturas egoístas e fechadas. “Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes proponho hoje?” Eram justas porque tinham como objetivo ajudar a conquistar a terra e a viver nela de forma solidária.
Mas a lei que os legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos discípulos era bem outra coisa. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão sem lavar as mãos?” Não lhes interessava a partilha dos pães e peixes que alimentara uma multidão, mas o fato de que os discípulos e todo o povo tinham comido sem lavar as mãos.
“Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
A verdade é que alguns costumes irrelevantes vão conquistando uma importância cada vez maior e acabam aparecendo à consciência como expressões da vontade de Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão ou não. E quanta polêmica em torno da prática de leigos e leigas proclamar o Evangelho numa celebração eucarística. E sem falar na questão da comunhão aos casais separados ou recasados...
Quanto esforço para filtrar um mosquito sem perceber que estamos engolindo dezenas de camelos. Quanto esforço para limpar as coisas por fora sem olhar para o que é mais importante. Quantos costumes pouco importantes são alçados ao patamar de lei de Deus. “Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
Jesus estabelece um princípio que orienta nosso discernimento: “O que vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura.” O que nos diminui ou torna sujos não é nossa condição social, nosso pouco estudo ou nossos poucos recursos, mas as ações e decisões que tomamos.
“É de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções...”
Então não se trata de maquiar a realidade ou de manter as aparências, mas de purificar nossa percepção e nossos interesses. “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultério, ambições sem limites, maldades, malícia, devassidão, inveja, cobiça, orgulho, falta de juízo...” E poderíamos completar a lista por nossa própria conta. É aqui que deve se concentrar toda nossa atenção.
Como não lembrar aqui a figura grandiosa e delicada de Dom Helder Câmara, cujos 10 anos de morte recordamos na ultima quinta-feira? Poucas pessoas conseguiram descer ao fundo dos labirintos do coração humano e compreender seus mistérios como ele. Poucas figuras religiosas conseguiram conjugar tão bem quanto ele doçura e firmeza. Poucas autoridades eclesiásticas conseguiram relativizar com tanta liberdade as tradições humanas em nome do Evangelho como fez este santo. Oxalá consigamos viver como ele a religião pura e verdadeira: socorrer os pobres e oprimidos em suas necessidades.
Pe. Itacir Brassiani msf