As serpentinas e confetes ainda cobrem os salões de festa. Os carros alegóricos que encantaram o público anda estão retornando aos galpões transformados em fábricas de arte. O ritmo alegre do carnaval ainda faz eco em nossa mente e balança levemente nosso corpo cansado. E de repente somos solicitados por uma mensagem clara e urgente: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro. É agora o tempo favorável, é agora o dia da salvação!” Não se trata de um chamamento a uma penitência reparatória dos pretensos abusos cometidos no carnaval, mas a um discernimento lúcido sobre nossos projetos e práticas pessoais, eclesiais e sociais. A quaresma está voltada para a frente, e não preocupada apenas com o que passou. Soa o sinal que abre o tempo de preparar o mais belo enredo e a mais sublime fantasia, de reunir numa escola original todos os homens e mulheres de boa vontade, de ensaiar o Grande Dia em que ao dinheiro será apenas um meio para o bem-viver de todos e não um ídolo diante do qual se dobram joelhos e se sacrificam vidas.
“Voltai para o Senhor, vosso Deus...”
A tempo quaresmal é positivamente um tempo de concentração e busca do essencial, tanto na vida pessoal como eclesial e social. Tantas vezes as urgências furam a fila e se colocam à frente do essencial. A quaresma nos convida a voltar a Deus de todo o coração, ou seja: a vencer a tendência à fragmentação, de acender uma vela para cada santo, a servir a Deus e ao dinheiro. É um tempo para verter todas as energias ao único objetivo realmente decisivo: caminhar com humildade na presença de Deus e construir relações fraternas e uma sociedade justa.
Assim, o essencial não é fazer penitência para reparar os abusos que teriam sido cometidos nos dias de carnaval, mas exercitar a convergência da mente, do coração e das mãos na intensa e exigente tarefa de refazer as relações humanas, de superar os estreitos horizontes dos interesses mesquinhos e de abrir o olhar para o amplo horizonte do bem comum, comumente trocado por um bem ordinário e privado.
“Rasgai vossos corações, não as roupas!”
A palavra forte e direta do profeta Joel proclama a bondade e a compaixão de Deus, nos desperta das ressacas da vida e chama a superar o velho costume de mudar apenas as aparências. “Rasguem o coração e não as roupas! Voltem para Javé, o Deus de vocês, pois ele é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor...”
Nada de trocar apenas as máscaras, de renovar o guarda-roupa, de mudar apenas as cores das toalhas e estolas, como se elas fossem capazes de esconder nossos fechamentos e resistências. Joel aponta para a necessidade de mudanças mais reais e radicais. Quando fala em rasgar o coração, o profeta não pretende centrar sua atenção nos sentimentos, mas na raiz das decisões e ações. Ele anuncia que os gestos externos de arrependimento e mudança não são suficientes. A verdadeira mudança se revela nas opções, ações e relações.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam a mudança de direção e a convergência de energias: a esmola, a oração e o jejum. Mas neste ano, Jesus Cristo nos convoca à vigilância e à auto-crítica sobre nossa relação com o dinheiro. Se nem mesmo a oração, o jejum e a esmola não estão livres da falsificação e do faz-de-conta, o que dizer das nossas práticas econômicas?
“Quando deres esmola, não mandes tocar a trombeta diante de ti...”
Jesus não condena a prática da esmola, mas também não se deixa enganar por ela. O que Jesus pede é que verifiquemos a motivação e a disposição com que a fazemos. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua esquerda não saiba o que a sua direita faz.” Uma esmola acompanhada de publicidade beneficia mais a pessoa que dá do que aquela que está em necessidade. É como recitar um papel.
O sentido profundo da esmola é a solidariedade e a partilha com os pobres. Mais que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é “fruto da terra e do trabalho da humanidade”, e não nossa propriedade absoluta. A partilha generosa, demonstrada na doação de bens econômicos ou no engajamento nas lutas dos oprimidos, é certamente um sinal externo de que queremos voltar o coração inteiramente para Deus e centrar a vida naquilo que é essencial.
“Quando orardes, não sejais como os hipócritas...”
Em todas as religiões a oração goza de um apreço privilegiado como expressão da fé e da comunhão com a divindade. No judaísmo que Jesus conheceu não era diferente. Até hoje não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. Como se isso bastasse para estar de bem com Deus...
No Evangelho de hoje Jesus não insiste na quantidade da oração, mas na sua qualidade e motivação. E começa criticando a postura das pessoas que rezam como se recitassem um papel no teatro ou no cinema, como se o essencial fosse que os outros percebam que estão rezando. A verdadeira oração não se coaduna com a busca de publicidade. A audiência da nossa oração é feita de um só ouvinte: Deus.
A oração é abertura radical a Deus e à sua vontade, superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades. É diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem, mas que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não estejam bem. A oração quaresmal que expressa nossa volta ao essencial precisa ser capaz de apresentar a Deus os clamores e louvores do nosso povo.
“Quando jejuardes, não fiqueis de rosto triste...”
No tempo de Jesus muitas pessoas usavam o jejum, um sinal externo de arrepedimento e mudança, para impressionar os outros. O rosto triste evidenciava mais uma perda que uma conquista. Depois de estar exilado por tempo, o jejum voltou a estar na moda, e hoje recebe o nome de dieta ou malhação. Quem faz dieta ou malhaço está preocupado consigo mesmo: com a saúde ou com a aparência.
O jejum é um recurso pedagógico para levar à experiência da vulnerabilidade e das carências humanas das quais normalmente fugimos. Todos assimilamos o mito da satisfação plena, da vida que se prolonga infinitamente e do poder que devemos exercer sobre tudo e sobre todos. Por isso, evitamos tudo o que possa lembrar carência e fragilidade. O jejum desmascara essa mentira.
Na quaresma o jejum está a serviço da renovação da vida. E esta renovação se expressa na abertura humilde e reverente a Deus, o único absoluto, na consciência da interdependência em relação aos irmãos e irmãs e na partilha dos alimentos que deixamos de consumir. Por isso, o jejum verdadeiro e puro vem acompanhado pelo perfume e pela alegria estampada em todo o nosso ser.
“Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus!”
As práticas religiosas não estão imunes à falsidade e à superficialidade. Elas podem ser simplesmente estratégias desesperadas de quem foge do medo e busca segurança no reconhecimento dos outros ou num sujeito absoluto que denomina deus. Mas isso não casa com o Evangelho. Jesus nos ajuda a entender que não podemos obedecer à vontade de Deus e, ao mesmo tempo, à logica do dinheiro.
Reconciliar-se com Deus significa reconhecê-lo e estabelecê-lo como horizonte maior das opções, como Caminho que, mantendo-nos abertos e solidários, nos leva ao encontro dos irmãos e irmãs. Reconciliar-se com Deus implica voltar às próprias raízes e ali encontrar não apenas um ‘eu’, mas também um ‘tu’ e um ‘outro’. É consolidar a convicção de que Deus só pode ser amado e servido nos seus filhos e filhas, especialmente naqueles que são mais vulneráveis.
Vivamos a quaresma que johe se inaugura fazendo da fraternidade uma meta permanente, e não apenas uma campanha temporária que dura cinco semanas. Aprofundemos a reflexão sobre a sedução e as armadilhas que o dinheiro apresenta, inclusive para nossas igrejas. Comecemos hoje, aqui e por nós mesmos. “Cria em mim um coração puro e renova no meu peito um espírito firme. Que um espírito generoso me sustente.” Cantemos com os lábios e com a vida: “Eis o tempo de conversão! Eis o dia da salvação! Ao Pai voltemos, juntos andemos... Eis o tempo de conversão!” E que Deus nos ajude a manter esta disposição durante as cinco semanas da quaresma.
Pe. Itacir Brassiani msf
“Voltai para o Senhor, vosso Deus...”
A tempo quaresmal é positivamente um tempo de concentração e busca do essencial, tanto na vida pessoal como eclesial e social. Tantas vezes as urgências furam a fila e se colocam à frente do essencial. A quaresma nos convida a voltar a Deus de todo o coração, ou seja: a vencer a tendência à fragmentação, de acender uma vela para cada santo, a servir a Deus e ao dinheiro. É um tempo para verter todas as energias ao único objetivo realmente decisivo: caminhar com humildade na presença de Deus e construir relações fraternas e uma sociedade justa.
Assim, o essencial não é fazer penitência para reparar os abusos que teriam sido cometidos nos dias de carnaval, mas exercitar a convergência da mente, do coração e das mãos na intensa e exigente tarefa de refazer as relações humanas, de superar os estreitos horizontes dos interesses mesquinhos e de abrir o olhar para o amplo horizonte do bem comum, comumente trocado por um bem ordinário e privado.
“Rasgai vossos corações, não as roupas!”
A palavra forte e direta do profeta Joel proclama a bondade e a compaixão de Deus, nos desperta das ressacas da vida e chama a superar o velho costume de mudar apenas as aparências. “Rasguem o coração e não as roupas! Voltem para Javé, o Deus de vocês, pois ele é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor...”
Nada de trocar apenas as máscaras, de renovar o guarda-roupa, de mudar apenas as cores das toalhas e estolas, como se elas fossem capazes de esconder nossos fechamentos e resistências. Joel aponta para a necessidade de mudanças mais reais e radicais. Quando fala em rasgar o coração, o profeta não pretende centrar sua atenção nos sentimentos, mas na raiz das decisões e ações. Ele anuncia que os gestos externos de arrependimento e mudança não são suficientes. A verdadeira mudança se revela nas opções, ações e relações.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam a mudança de direção e a convergência de energias: a esmola, a oração e o jejum. Mas neste ano, Jesus Cristo nos convoca à vigilância e à auto-crítica sobre nossa relação com o dinheiro. Se nem mesmo a oração, o jejum e a esmola não estão livres da falsificação e do faz-de-conta, o que dizer das nossas práticas econômicas?
“Quando deres esmola, não mandes tocar a trombeta diante de ti...”
Jesus não condena a prática da esmola, mas também não se deixa enganar por ela. O que Jesus pede é que verifiquemos a motivação e a disposição com que a fazemos. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua esquerda não saiba o que a sua direita faz.” Uma esmola acompanhada de publicidade beneficia mais a pessoa que dá do que aquela que está em necessidade. É como recitar um papel.
O sentido profundo da esmola é a solidariedade e a partilha com os pobres. Mais que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é “fruto da terra e do trabalho da humanidade”, e não nossa propriedade absoluta. A partilha generosa, demonstrada na doação de bens econômicos ou no engajamento nas lutas dos oprimidos, é certamente um sinal externo de que queremos voltar o coração inteiramente para Deus e centrar a vida naquilo que é essencial.
“Quando orardes, não sejais como os hipócritas...”
Em todas as religiões a oração goza de um apreço privilegiado como expressão da fé e da comunhão com a divindade. No judaísmo que Jesus conheceu não era diferente. Até hoje não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. Como se isso bastasse para estar de bem com Deus...
No Evangelho de hoje Jesus não insiste na quantidade da oração, mas na sua qualidade e motivação. E começa criticando a postura das pessoas que rezam como se recitassem um papel no teatro ou no cinema, como se o essencial fosse que os outros percebam que estão rezando. A verdadeira oração não se coaduna com a busca de publicidade. A audiência da nossa oração é feita de um só ouvinte: Deus.
A oração é abertura radical a Deus e à sua vontade, superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades. É diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem, mas que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não estejam bem. A oração quaresmal que expressa nossa volta ao essencial precisa ser capaz de apresentar a Deus os clamores e louvores do nosso povo.
“Quando jejuardes, não fiqueis de rosto triste...”
No tempo de Jesus muitas pessoas usavam o jejum, um sinal externo de arrepedimento e mudança, para impressionar os outros. O rosto triste evidenciava mais uma perda que uma conquista. Depois de estar exilado por tempo, o jejum voltou a estar na moda, e hoje recebe o nome de dieta ou malhação. Quem faz dieta ou malhaço está preocupado consigo mesmo: com a saúde ou com a aparência.
O jejum é um recurso pedagógico para levar à experiência da vulnerabilidade e das carências humanas das quais normalmente fugimos. Todos assimilamos o mito da satisfação plena, da vida que se prolonga infinitamente e do poder que devemos exercer sobre tudo e sobre todos. Por isso, evitamos tudo o que possa lembrar carência e fragilidade. O jejum desmascara essa mentira.
Na quaresma o jejum está a serviço da renovação da vida. E esta renovação se expressa na abertura humilde e reverente a Deus, o único absoluto, na consciência da interdependência em relação aos irmãos e irmãs e na partilha dos alimentos que deixamos de consumir. Por isso, o jejum verdadeiro e puro vem acompanhado pelo perfume e pela alegria estampada em todo o nosso ser.
“Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus!”
As práticas religiosas não estão imunes à falsidade e à superficialidade. Elas podem ser simplesmente estratégias desesperadas de quem foge do medo e busca segurança no reconhecimento dos outros ou num sujeito absoluto que denomina deus. Mas isso não casa com o Evangelho. Jesus nos ajuda a entender que não podemos obedecer à vontade de Deus e, ao mesmo tempo, à logica do dinheiro.
Reconciliar-se com Deus significa reconhecê-lo e estabelecê-lo como horizonte maior das opções, como Caminho que, mantendo-nos abertos e solidários, nos leva ao encontro dos irmãos e irmãs. Reconciliar-se com Deus implica voltar às próprias raízes e ali encontrar não apenas um ‘eu’, mas também um ‘tu’ e um ‘outro’. É consolidar a convicção de que Deus só pode ser amado e servido nos seus filhos e filhas, especialmente naqueles que são mais vulneráveis.
Vivamos a quaresma que johe se inaugura fazendo da fraternidade uma meta permanente, e não apenas uma campanha temporária que dura cinco semanas. Aprofundemos a reflexão sobre a sedução e as armadilhas que o dinheiro apresenta, inclusive para nossas igrejas. Comecemos hoje, aqui e por nós mesmos. “Cria em mim um coração puro e renova no meu peito um espírito firme. Que um espírito generoso me sustente.” Cantemos com os lábios e com a vida: “Eis o tempo de conversão! Eis o dia da salvação! Ao Pai voltemos, juntos andemos... Eis o tempo de conversão!” E que Deus nos ajude a manter esta disposição durante as cinco semanas da quaresma.
Pe. Itacir Brassiani msf
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