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(Ex 12,1-8.11-14; Sl 115/116; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15)
Hoje nos reunimos para celebrar a Aliança nova e terna que Deus renova conosco, seu povo amado, filhas e filhos queridos, família na qual seu Filho se faz irmão. A mesa está pronta, a toalha está linda, as flores estão coloridas e o alimento é simples e saboroso. E há lugar para todos/as, inclusive para pecadores/as como nós. O próprio Jesus de Nazaré nos diz que preparou e desejou ardentemente celebrar esta ceia conosco (cf. Lc 22,15). E aqui a acorremos porque intuímos que não temos outra honra ou glória que esta de trazer em nossos sonhos, projetos, ações e relacionamentos as marcas da cruz de Cristo, do seu amor sem fronteiras. Aqui estamos para ouvir de novo as palavras do testamento do nosso irmão e filho de Deus, para provar mais uma vez como ele nos ama, para continuar o dinamismo da sua missão no mundo. Efetivamente, ele não baixa a cabeça diante de nenhum poder, mas se inclina diante do ser humano necessitado para servi-lo.
“Este dia será para vós uma festa memorável.”
Na mesa que reúne as pessoas que desejam ardentemente viver a fraternidade, fazemos memória, recordamos. Com o povo de Israel e todos os povos, trazemos de novo ao coração as inúmeras travessias já realizadas ou ainda em processo: travessias com avanços e retrocessos, quedas e recomeços, sonhos e traições; travessias marcadas por uma Presença que se mostra, ao mesmo tempo, como nuvem luminosa e como sombra acolhedora.
Esta celebração é também um memorial dos êxodos e travessias que somos convidados/as a empreender como indivíduos: travessias de um eu fechado em si mesmo para uma comunidade aberta e solidária; de uma mesa grande e vazia para uma mesa farta e partilhada; de projetos estreitos e ancorados no sucesso pessoal para utopias coletivas; da sedução indisfarçável que a riqueza exerce sobre nós ao despojamento livre e generoso em favor dos outros; de lutas empreendidas contando apenas conosco mesmos/as para alianças bem mais que estratégicas.
A ceia eucarística é a memória de Jesus e dos discípulos e discípulas que, tendo atrás as memoráveis experiências das refeições partilhadas com toda sorte de pecadores/as e à frente a ameaça dos poderes que não toleram mudanças, compartilham suor e sangue, vinho e pão, sonhos e esperanças. Memória de incompreensões, medos, distanciamentos e traições. Memória daquele que tendo nos amado, ama-nos até o fim e se oferece como perene alimento para a caminhada.
“Isto é meu corpo entregue por vós!”
A eucaristia é alimento para quem está a caminho. Celebramos esta ceia e aceitamos a aliança que Deus nos oferece ainda “na terra do Egito”. Faz escuro, mas cantamos para despertar a aurora que não demora. Celebramos esta refeição de comunhão prontos/as para realizar uma travessia urgente: com cintos que diminuem os embaraços; com sandálias que agilizam os passos; com cajados que nos sustentam nos vales escuros. “Quem comeu de pé a páscoa não tem lucros, nem tem medo”, poetiza o velho e lúcido Dom Casaldáliga.
Não um cordeiro, mas um corpo feito inteiramente dom. Corpo não é apenas uma carcaça, a metade exterior e mais desprezível da pessoa: é a totalidade concreta, é diferença e relação. Jesus Cristo oferece a concretude de sua vida como dom e partilha. É sua vida inteira – sonhos, ações, corpo e sangue – que ele nos dá sem reservas e sem impor condições. E o faz numa ceia ordinária, numa refeição marcada pelo afeto fraterno, num contexto de ameaça de morte, pedindo insistentemente que façamos o mesmo para manter viva sua memória. Ele nos dá um exemplo, para que nós façamos o mesmo.
A Eucaristia faz da Igreja uma comunidade aberta em dom àqueles/as que estão fora ou estão longe. O corpo de Cristo é a comunidade viva dos fiéis, o povo de Deus que ultrapassa as fronteiras eclesiásticas, o corpo dos pobres e marginalizados que ostentam suas chagas vivas. O corpo-Igreja é dado por nós, para que sejamos homens e mulheres emancipados, maiores, maduros e livres como Cristo. E isso significa encarnar a mesma atitude fundamental de amor e serviço vivida por Jesus Cristo, superando a tentação de anunciar Deus e servir ao dinheiro, de falar de amor e agir pelo temor.
“Tu vais lavar-me os pés?”
Jesus explicita sua oferta sem reservas no gesto de lavar os pés dos discípulos. Ele havia dito e repetido que viera para servir e não para ser servido, como Servo e não como Senhor, e demonstrara isso numa dedicação sem cansaço aos últimos. Depois de repartir pão e vinho, Jesus deixa a mesa e assume o serviço das mulheres e crianças, lavando os pés dos que estavam à mesa. É o próprio Deus que se inclina diante da humanidade e, de joelhos, lava nossos pés. E não o faz para demonstrar humildade, mas para desfazer as hierarquias e afirmar a absoluta igualdade de todos/as. Deus não se identifica com o soberano mas com o servo.
Entre os convivas estão Pedro e Judas. Pedro reage diante da lição de Jesus. Não lhe parece bem mudar as coisas assim tão radicalmente: para ele, senhores e superiores devem ser honrados; servos e inferiores devem ser desfrutados; esta é a ordem e nada deve ser mudado. Parece-lhe difícil aceitar que esta não é a ordem querida por Deus, que participar da Eucaristia implica em fazer-se memória viva da vida de Jesus Servo. Como custa à Igreja e a cada um/a de nós assimilar esta lição. Mas Jesus não ensaia uma cena teatral: ele é o Servo, e a missão que compartilha conosco é servir, na amizade e na solidariedade.
O evangelista não diz quem foi o primeiro e quem foi o último, e Jesus lava os pés também de Judas. Nossa tradição cultural propõe a prática de ‘malhar o Judas’, mas Jesus nos ensina a acolher também àqueles/as nos quais se condensa a resistência e o mistério da iniquidade. Não se trata de absolver os algozes e ignorar seus crimes, mas de ser capaz de ver mesmo nas pessoas contraditórias, resistentes e errantes um ser humano. E mais: precisamos acolher a possibilidade de resitência, fechamento e traição que está em de nós mesmos/as.
A lição é difícil e nada óbvia. É por isso que depois de cear e de lavar os pés dos discípulos, Jesus interroga os discípulos: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” E para não deixar dúvidas, explica: “Eu lhes dei um exemplo... E vocês serão felizes se o puserem em prática...” Deus coloca tudo em suas mãos, e este tudo se mostra nas mãos que lavam os pés, nas mãos que serão pregadas na cruz, no serviço cordial e fraterno, na recusa das hierarquizações.
“Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor...”
O mandamento final é que passemos da memória verbal e ritual à realização histórica e vivencial: “Fazei isso em memória de mim”; “Se puserdes em prática, sereis felizes.” A Eucaristia é memorial da solidariedade de Jesus realizada efetivamente nos caminhos da Galiléia e no martírio da cruz. Sem isso a santa ceia será um rito vazio. Precisamos dar conteúdo e concretude à Eucaristia no dom cotidiano pelos outros, no serviço despojado a todos/as, mesmo àqueles/as que aparentemente não o merecem, mas carecem.
Jesus de Nazaré nos convida à Ceia que preparou com cuidado sincero e amigo e nos acolhe à sua mesa. Participemos dignamente desta ceia-aliança para alcançarmos um amor maduro e concreto. Sentados/as, como pessoas reconhecidas e dignas, ou em pé, como militantes prontos/as para a luta, descubramos que a vida de cada pessoa humana é muito preciosa aos olhos de Deus. Por isso, seguros/as do seu amor, tomemos o avental e lavemos os pés uns dos outros, no interior do templo e nos caminhos da história.
Não caiamos na tentação – tão forte e tão presente! – de deixar a bacia e o avental bem guardados no interior do templo para a próxima encenação. O gesto do lava-pés, complementar ao gesto da mesa e da doação total na cruz, é uma lição para ser praticada também no seio das nossas famílias, grupos, associações e no coração de uma sociedade habituada a bajular os que detém o poder e pisar violentamente sobre os empobrecidos. Jesus não nos pede para repetir um rito, mas para assimilar uma ética. Alcançamos a verdadeira liberdade quando renunciamos às hierarquias e honras vazias, vencemos a envolvente sedução do dinheiro e somos capazes de servir efetivamente.
Pe. Itacir Brassiani msf
(Ex 12,1-8.11-14; Sl 115/116; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15)
Hoje nos reunimos para celebrar a Aliança nova e terna que Deus renova conosco, seu povo amado, filhas e filhos queridos, família na qual seu Filho se faz irmão. A mesa está pronta, a toalha está linda, as flores estão coloridas e o alimento é simples e saboroso. E há lugar para todos/as, inclusive para pecadores/as como nós. O próprio Jesus de Nazaré nos diz que preparou e desejou ardentemente celebrar esta ceia conosco (cf. Lc 22,15). E aqui a acorremos porque intuímos que não temos outra honra ou glória que esta de trazer em nossos sonhos, projetos, ações e relacionamentos as marcas da cruz de Cristo, do seu amor sem fronteiras. Aqui estamos para ouvir de novo as palavras do testamento do nosso irmão e filho de Deus, para provar mais uma vez como ele nos ama, para continuar o dinamismo da sua missão no mundo. Efetivamente, ele não baixa a cabeça diante de nenhum poder, mas se inclina diante do ser humano necessitado para servi-lo.
“Este dia será para vós uma festa memorável.”
Na mesa que reúne as pessoas que desejam ardentemente viver a fraternidade, fazemos memória, recordamos. Com o povo de Israel e todos os povos, trazemos de novo ao coração as inúmeras travessias já realizadas ou ainda em processo: travessias com avanços e retrocessos, quedas e recomeços, sonhos e traições; travessias marcadas por uma Presença que se mostra, ao mesmo tempo, como nuvem luminosa e como sombra acolhedora.
Esta celebração é também um memorial dos êxodos e travessias que somos convidados/as a empreender como indivíduos: travessias de um eu fechado em si mesmo para uma comunidade aberta e solidária; de uma mesa grande e vazia para uma mesa farta e partilhada; de projetos estreitos e ancorados no sucesso pessoal para utopias coletivas; da sedução indisfarçável que a riqueza exerce sobre nós ao despojamento livre e generoso em favor dos outros; de lutas empreendidas contando apenas conosco mesmos/as para alianças bem mais que estratégicas.
A ceia eucarística é a memória de Jesus e dos discípulos e discípulas que, tendo atrás as memoráveis experiências das refeições partilhadas com toda sorte de pecadores/as e à frente a ameaça dos poderes que não toleram mudanças, compartilham suor e sangue, vinho e pão, sonhos e esperanças. Memória de incompreensões, medos, distanciamentos e traições. Memória daquele que tendo nos amado, ama-nos até o fim e se oferece como perene alimento para a caminhada.
“Isto é meu corpo entregue por vós!”
A eucaristia é alimento para quem está a caminho. Celebramos esta ceia e aceitamos a aliança que Deus nos oferece ainda “na terra do Egito”. Faz escuro, mas cantamos para despertar a aurora que não demora. Celebramos esta refeição de comunhão prontos/as para realizar uma travessia urgente: com cintos que diminuem os embaraços; com sandálias que agilizam os passos; com cajados que nos sustentam nos vales escuros. “Quem comeu de pé a páscoa não tem lucros, nem tem medo”, poetiza o velho e lúcido Dom Casaldáliga.
Não um cordeiro, mas um corpo feito inteiramente dom. Corpo não é apenas uma carcaça, a metade exterior e mais desprezível da pessoa: é a totalidade concreta, é diferença e relação. Jesus Cristo oferece a concretude de sua vida como dom e partilha. É sua vida inteira – sonhos, ações, corpo e sangue – que ele nos dá sem reservas e sem impor condições. E o faz numa ceia ordinária, numa refeição marcada pelo afeto fraterno, num contexto de ameaça de morte, pedindo insistentemente que façamos o mesmo para manter viva sua memória. Ele nos dá um exemplo, para que nós façamos o mesmo.
A Eucaristia faz da Igreja uma comunidade aberta em dom àqueles/as que estão fora ou estão longe. O corpo de Cristo é a comunidade viva dos fiéis, o povo de Deus que ultrapassa as fronteiras eclesiásticas, o corpo dos pobres e marginalizados que ostentam suas chagas vivas. O corpo-Igreja é dado por nós, para que sejamos homens e mulheres emancipados, maiores, maduros e livres como Cristo. E isso significa encarnar a mesma atitude fundamental de amor e serviço vivida por Jesus Cristo, superando a tentação de anunciar Deus e servir ao dinheiro, de falar de amor e agir pelo temor.
“Tu vais lavar-me os pés?”
Jesus explicita sua oferta sem reservas no gesto de lavar os pés dos discípulos. Ele havia dito e repetido que viera para servir e não para ser servido, como Servo e não como Senhor, e demonstrara isso numa dedicação sem cansaço aos últimos. Depois de repartir pão e vinho, Jesus deixa a mesa e assume o serviço das mulheres e crianças, lavando os pés dos que estavam à mesa. É o próprio Deus que se inclina diante da humanidade e, de joelhos, lava nossos pés. E não o faz para demonstrar humildade, mas para desfazer as hierarquias e afirmar a absoluta igualdade de todos/as. Deus não se identifica com o soberano mas com o servo.
Entre os convivas estão Pedro e Judas. Pedro reage diante da lição de Jesus. Não lhe parece bem mudar as coisas assim tão radicalmente: para ele, senhores e superiores devem ser honrados; servos e inferiores devem ser desfrutados; esta é a ordem e nada deve ser mudado. Parece-lhe difícil aceitar que esta não é a ordem querida por Deus, que participar da Eucaristia implica em fazer-se memória viva da vida de Jesus Servo. Como custa à Igreja e a cada um/a de nós assimilar esta lição. Mas Jesus não ensaia uma cena teatral: ele é o Servo, e a missão que compartilha conosco é servir, na amizade e na solidariedade.
O evangelista não diz quem foi o primeiro e quem foi o último, e Jesus lava os pés também de Judas. Nossa tradição cultural propõe a prática de ‘malhar o Judas’, mas Jesus nos ensina a acolher também àqueles/as nos quais se condensa a resistência e o mistério da iniquidade. Não se trata de absolver os algozes e ignorar seus crimes, mas de ser capaz de ver mesmo nas pessoas contraditórias, resistentes e errantes um ser humano. E mais: precisamos acolher a possibilidade de resitência, fechamento e traição que está em de nós mesmos/as.
A lição é difícil e nada óbvia. É por isso que depois de cear e de lavar os pés dos discípulos, Jesus interroga os discípulos: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” E para não deixar dúvidas, explica: “Eu lhes dei um exemplo... E vocês serão felizes se o puserem em prática...” Deus coloca tudo em suas mãos, e este tudo se mostra nas mãos que lavam os pés, nas mãos que serão pregadas na cruz, no serviço cordial e fraterno, na recusa das hierarquizações.
“Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor...”
O mandamento final é que passemos da memória verbal e ritual à realização histórica e vivencial: “Fazei isso em memória de mim”; “Se puserdes em prática, sereis felizes.” A Eucaristia é memorial da solidariedade de Jesus realizada efetivamente nos caminhos da Galiléia e no martírio da cruz. Sem isso a santa ceia será um rito vazio. Precisamos dar conteúdo e concretude à Eucaristia no dom cotidiano pelos outros, no serviço despojado a todos/as, mesmo àqueles/as que aparentemente não o merecem, mas carecem.
Jesus de Nazaré nos convida à Ceia que preparou com cuidado sincero e amigo e nos acolhe à sua mesa. Participemos dignamente desta ceia-aliança para alcançarmos um amor maduro e concreto. Sentados/as, como pessoas reconhecidas e dignas, ou em pé, como militantes prontos/as para a luta, descubramos que a vida de cada pessoa humana é muito preciosa aos olhos de Deus. Por isso, seguros/as do seu amor, tomemos o avental e lavemos os pés uns dos outros, no interior do templo e nos caminhos da história.
Não caiamos na tentação – tão forte e tão presente! – de deixar a bacia e o avental bem guardados no interior do templo para a próxima encenação. O gesto do lava-pés, complementar ao gesto da mesa e da doação total na cruz, é uma lição para ser praticada também no seio das nossas famílias, grupos, associações e no coração de uma sociedade habituada a bajular os que detém o poder e pisar violentamente sobre os empobrecidos. Jesus não nos pede para repetir um rito, mas para assimilar uma ética. Alcançamos a verdadeira liberdade quando renunciamos às hierarquias e honras vazias, vencemos a envolvente sedução do dinheiro e somos capazes de servir efetivamente.
Pe. Itacir Brassiani msf