(Ecl 1,2.2,21-23; Sl 89/90; Cl 3,1-5.9-11; Lc 12,13-21)
Com a celebração deste domingo, as comunidades católicas da Igreja do Brasil abrem o mês vocacional. E a primeira semana nos convida a recordar, aproveitando a memória de São João Maria Vianey (dia 03), a vocação presbiteral. Mas por que não lembrar aqui também a vida-semente de Dom Enrique Angelelli, bispo e profeta argentino, morto no dia 04 de agosto de 1976? Ele dizia que no coração do bispo (e do padre) as alegrias e dores do povo devem encontrar guarida. E escreveu poeticamente um quase-testamento: “Minha vida foi como um riacho... Anunciar o Aleluia aos pobres e aliviar-se no interior. Cantos partilhados com o povo e silênciosos encontros contigo, Senhor...” Uma vida assim esbanjada é loucura ou sabedoria? Precisamos aprender sempre de novo o que significa ser rico aos olhos de Deus.
Com a celebração deste domingo, as comunidades católicas da Igreja do Brasil abrem o mês vocacional. E a primeira semana nos convida a recordar, aproveitando a memória de São João Maria Vianey (dia 03), a vocação presbiteral. Mas por que não lembrar aqui também a vida-semente de Dom Enrique Angelelli, bispo e profeta argentino, morto no dia 04 de agosto de 1976? Ele dizia que no coração do bispo (e do padre) as alegrias e dores do povo devem encontrar guarida. E escreveu poeticamente um quase-testamento: “Minha vida foi como um riacho... Anunciar o Aleluia aos pobres e aliviar-se no interior. Cantos partilhados com o povo e silênciosos encontros contigo, Senhor...” Uma vida assim esbanjada é loucura ou sabedoria? Precisamos aprender sempre de novo o que significa ser rico aos olhos de Deus.
“Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.”
Qual é a intenção deste anônimo personagem que chama Jesus de ‘mestre’? Depois da discussão sobre a autoridade de Jesus para expulsar demônios, da sua advertência sobre a busca obsessiva de sinais grandiosos e da crítica dura aos fariseus e doutores da lei, “alguém do meio da multidão” pede a Jesus, sem esconder um tom de quem está dando ordens: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.” Este sujeito sem nome faria parte do grupo dos fariseus ou doutores da lei?
De fato, no evangelho de Lucas são sempre as pessoas estranhas a Jesus ou seus adversários declarados que costumam chamá-lo ironicamente ‘mestre’: o fariseu que criticou Jesus por deixar-se beijar pela mulher pecadora (7,40); os familiares de Jairo, cuja filha estava doente (8,49); o pai de um rapaz endomoniado (9,38); o doutor da lei criticado por Jesus (11,45); um homem da elite judaica (18,18); os fariseus (19,39); os espias que queriam denunciá-lo (20,21); os saduceus (29,28); os escribas (20,39).
Qual é a intenção deste anônimo personagem que chama Jesus de ‘mestre’? Depois da discussão sobre a autoridade de Jesus para expulsar demônios, da sua advertência sobre a busca obsessiva de sinais grandiosos e da crítica dura aos fariseus e doutores da lei, “alguém do meio da multidão” pede a Jesus, sem esconder um tom de quem está dando ordens: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.” Este sujeito sem nome faria parte do grupo dos fariseus ou doutores da lei?
De fato, no evangelho de Lucas são sempre as pessoas estranhas a Jesus ou seus adversários declarados que costumam chamá-lo ironicamente ‘mestre’: o fariseu que criticou Jesus por deixar-se beijar pela mulher pecadora (7,40); os familiares de Jairo, cuja filha estava doente (8,49); o pai de um rapaz endomoniado (9,38); o doutor da lei criticado por Jesus (11,45); um homem da elite judaica (18,18); os fariseus (19,39); os espias que queriam denunciá-lo (20,21); os saduceus (29,28); os escribas (20,39).
“Guardai-vos de todo tipo de ganância.”
Parece que, chamando Jesus de mestre, este sujeito não está expressando sua concordância e sua adesão a ele. E Jesus precebe claramente a ironia da saudação e as contradições do demandante, tanto que responde dando a entender que se não é aceito como mestre, também não pode ser buscado como juiz. No fundo, Jesus percebe que esta pessoa, longe de ser alguém necessitado ou um candidato a discípulo, está sendo devorada pela ganância.
E é essa constatação que abre a Jesus a oportunidade para falar da relação com os bens. “Atenção! Guardai-vos contra todo tipo de ganância, pois mesmo que se tenha muitas coisas, a vida não consiste na abundância de bens.” A palavra grega ‘pleonexia’, que a bíblia traduz por ganância, significa literalmente querer sempre mais. Por trás da demanda não está uma necessidade, nem um princípio de justiça, mas a fome insaciável de bens. O desejo é encher o próprio barco de ouro e prata...
Para ilustrar e sublinhar a seriedade da sua afirmação, Jesus propõe uma parábola. O protagonista da história é uma pessoa profundamente ensimesmada. Ele pensa, fala e decide sempre sozinho. Não se interessa por mais ninguém. A linguagem é clara: meus celeiros, meu trigo, meus bens. E diz a si mesmo: “Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe e goza da vida.” Como não lembrar aqui a parábola do rico que festejava indiferente à miséria de Lázaro (Lc 16,19-31)?
Parece que, chamando Jesus de mestre, este sujeito não está expressando sua concordância e sua adesão a ele. E Jesus precebe claramente a ironia da saudação e as contradições do demandante, tanto que responde dando a entender que se não é aceito como mestre, também não pode ser buscado como juiz. No fundo, Jesus percebe que esta pessoa, longe de ser alguém necessitado ou um candidato a discípulo, está sendo devorada pela ganância.
E é essa constatação que abre a Jesus a oportunidade para falar da relação com os bens. “Atenção! Guardai-vos contra todo tipo de ganância, pois mesmo que se tenha muitas coisas, a vida não consiste na abundância de bens.” A palavra grega ‘pleonexia’, que a bíblia traduz por ganância, significa literalmente querer sempre mais. Por trás da demanda não está uma necessidade, nem um princípio de justiça, mas a fome insaciável de bens. O desejo é encher o próprio barco de ouro e prata...
Para ilustrar e sublinhar a seriedade da sua afirmação, Jesus propõe uma parábola. O protagonista da história é uma pessoa profundamente ensimesmada. Ele pensa, fala e decide sempre sozinho. Não se interessa por mais ninguém. A linguagem é clara: meus celeiros, meu trigo, meus bens. E diz a si mesmo: “Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe e goza da vida.” Como não lembrar aqui a parábola do rico que festejava indiferente à miséria de Lázaro (Lc 16,19-31)?
“Tolo! Para quem ficará o que acumulaste?”
Nossa cultura considera sábia, prudente inteligente a pessoa que poupa e acumula. Há até quem faça campanha para não dar esmolas, como se o problema do país fossem os pedintes e não os exploradores. Pensar nos outros, lutar com eles, defender seus direitos, parece coisa de doido, de quem não tem o que fazer ou de quem está mal intencionado. É verdade que alguns milionários hoje até ousam fazer caridade e têm suas fundações, mas o modelo seguido é mesmo o homem da parábola.
Jesus diz aos olhos de Deus as que pessoas que agem assim são absolutamente tolas, desprovidas de qualquer resquício de razão, vazias de qualquer valor humano, modelos que devem ser descartados como dignos de riso. São pessoas que, com suas decisões, cavam abismos que os separam dos simples humanos. E acabam cavando também a própria ruína, pois são humanamente tão pobres que só tém dinheiro... Perderam ou venderam barato tudo o mais.
Nossa cultura considera sábia, prudente inteligente a pessoa que poupa e acumula. Há até quem faça campanha para não dar esmolas, como se o problema do país fossem os pedintes e não os exploradores. Pensar nos outros, lutar com eles, defender seus direitos, parece coisa de doido, de quem não tem o que fazer ou de quem está mal intencionado. É verdade que alguns milionários hoje até ousam fazer caridade e têm suas fundações, mas o modelo seguido é mesmo o homem da parábola.
Jesus diz aos olhos de Deus as que pessoas que agem assim são absolutamente tolas, desprovidas de qualquer resquício de razão, vazias de qualquer valor humano, modelos que devem ser descartados como dignos de riso. São pessoas que, com suas decisões, cavam abismos que os separam dos simples humanos. E acabam cavando também a própria ruína, pois são humanamente tão pobres que só tém dinheiro... Perderam ou venderam barato tudo o mais.
“Buscai as coisas do alto...”
Mas se o acúmulo indiscriminado de bens é doidice e pobreza humana, o que significa ‘ser rico diante de Deus’? Está claro que para Jesus o problema não está nos bens em si mesmos. Ele não é um asceta que acha que as coisas materiais são intrinsecamente más. Ele mesmo gostava de gastar uns trocados com boas festas para se confraternizar com os marginalizados. O mal dos bens está no obstáculo que eles podem representar para a liberdade radical e para o engajamento no movimento do Reino de Deus.
Se não colocamos o ensinamento de Jesus no devido lugar, podemos resvalar para a ironia e para o cinismo daqueles que pregam moral de calça curta, que ensinam aos pobres a não se preocuparem com comida e roupas. Os pobres não podem ficar olhando os corvos e os lírios, pois não lhes resta senão trabalhar, mesmo percebendo que são outros os que ficam com os bens que produzem. A questão fundamental está em reconhecer o que realmente vale e tem prioridade sobre tudo: o Reino de Deus.
O Reino de Deus é a pérola preciosa e o tesouro valioso que vale tudo o que temos e o que sonhamos, pois não é o armazém que falta aos que aumentaram a produção, nem a aplicação vantajosa oferecida àqueles que têm mais do que necessitam: é o terreno no qual brota o trigo abundante que vai para a mesa dos pobres e não para os armazéns privados; é a carta constitucional que garante todos os direitos humanos a todas as pessoas; é o ventre no qual é gerada uma nova humanidade.
Mas se o acúmulo indiscriminado de bens é doidice e pobreza humana, o que significa ‘ser rico diante de Deus’? Está claro que para Jesus o problema não está nos bens em si mesmos. Ele não é um asceta que acha que as coisas materiais são intrinsecamente más. Ele mesmo gostava de gastar uns trocados com boas festas para se confraternizar com os marginalizados. O mal dos bens está no obstáculo que eles podem representar para a liberdade radical e para o engajamento no movimento do Reino de Deus.
Se não colocamos o ensinamento de Jesus no devido lugar, podemos resvalar para a ironia e para o cinismo daqueles que pregam moral de calça curta, que ensinam aos pobres a não se preocuparem com comida e roupas. Os pobres não podem ficar olhando os corvos e os lírios, pois não lhes resta senão trabalhar, mesmo percebendo que são outros os que ficam com os bens que produzem. A questão fundamental está em reconhecer o que realmente vale e tem prioridade sobre tudo: o Reino de Deus.
O Reino de Deus é a pérola preciosa e o tesouro valioso que vale tudo o que temos e o que sonhamos, pois não é o armazém que falta aos que aumentaram a produção, nem a aplicação vantajosa oferecida àqueles que têm mais do que necessitam: é o terreno no qual brota o trigo abundante que vai para a mesa dos pobres e não para os armazéns privados; é a carta constitucional que garante todos os direitos humanos a todas as pessoas; é o ventre no qual é gerada uma nova humanidade.
“Vos revestistes do homem novo.”
Podemos simplesmente apresentar os padres como modelo imitável daqueles que, vencendo a irrascível ganância, fizeram a escolha certa e tecera bolsas que não se estragam, ou, para usar a expressão de Paulo, se tornaram homens novos? A memória dos episódios evangélicos dos dois últimos domingos pede precaução e nos ensina a não responder apressadamente que sim. Marta representa os ministros que se sentem chefes, se preocupam com muitas coisas e querem mandar inclusive em Jesus.
O que é certo é que o ministério presbiteral parte da descoberta de um chamado, e isso supõe uma abertura que não encontramos no protagonista da parábola: este só escuta a voz dos próprios interesses e ambições, dialoga apenas consigo mesmo; é literalmente um homem fechado a qualquer chamado que venha de fora e, especialmente, daqueles que estão nas bases da história e fora do clube dos bem-sucedidos. O padre é chamado a ser um ministro, servo dos outros, e não senhor de si mesmo.
Tanto São João Maria Vianey como Enrique Angeleli mostram com a vida o que significa escolher a melhor parte, ser rico aos olhos de Deus, fazer bolsas que não se estragam, buscar apenas e sempre o Reino de Deus e sua justiça. Lutando permanentemente contra a ambição que pode corroer por dentro, eles colaboram para que os bens circulassem e servissem ao bem de todos, abriram o coração para acolher as alegrias e tristezas de todos os humanos seres e assim revelaram onde estava seu coração.
Podemos simplesmente apresentar os padres como modelo imitável daqueles que, vencendo a irrascível ganância, fizeram a escolha certa e tecera bolsas que não se estragam, ou, para usar a expressão de Paulo, se tornaram homens novos? A memória dos episódios evangélicos dos dois últimos domingos pede precaução e nos ensina a não responder apressadamente que sim. Marta representa os ministros que se sentem chefes, se preocupam com muitas coisas e querem mandar inclusive em Jesus.
O que é certo é que o ministério presbiteral parte da descoberta de um chamado, e isso supõe uma abertura que não encontramos no protagonista da parábola: este só escuta a voz dos próprios interesses e ambições, dialoga apenas consigo mesmo; é literalmente um homem fechado a qualquer chamado que venha de fora e, especialmente, daqueles que estão nas bases da história e fora do clube dos bem-sucedidos. O padre é chamado a ser um ministro, servo dos outros, e não senhor de si mesmo.
Tanto São João Maria Vianey como Enrique Angeleli mostram com a vida o que significa escolher a melhor parte, ser rico aos olhos de Deus, fazer bolsas que não se estragam, buscar apenas e sempre o Reino de Deus e sua justiça. Lutando permanentemente contra a ambição que pode corroer por dentro, eles colaboram para que os bens circulassem e servissem ao bem de todos, abriram o coração para acolher as alegrias e tristezas de todos os humanos seres e assim revelaram onde estava seu coração.
“Ensina-nos a contar os nossos dias...”
Assim, a vocação presbiteral, quando vivida com empenho e pessoal e com autenticidade, presta um grande serviço a todo o povo de Deus: revela que todas as formas de vida cristã – a vida clerical, a vida consagrada e a vida laical – têm uma irrenunciável dimensão de serviço aos irmãos e irmãs. Mas esta vocação específica só conseguirá cumprir bem sua missão se souber confrontar-se permanentemente com a pessoa de Jesus e seu Evangelho, se se deixar revestir do novo homem revelado em Jesus.
Esta é também a sabedoria que todos desejamos e necessitamos: a capacidade de avaliar corretamente o valor de todas as coisas, tanto os bens econômicos como os cargos e as funções, assim como o tempo histórico que vivemos. O salmista lembra que aos olhos de Deus mil anos podem representar menos que o dia de ontem, e que o aparente vigor da nossa vida é enganoso e nós podemos murchar e desaparecer na tarde que se aproxima. Precisamos aprender a contar bem os nossos dias!
E contar bem os nossos dias significa também colocar os bens econômicos no seu devido lugar. Um projeto de vida fundamentado no acúmulo sem limites não tem fundamento. A ganância desmedida pode nos levar a devorar a natureza, a sacrificar amigos/as e familiares, a desorientar ou esterilizar a fé e, enfim, a perder a dimensão de gratuidade e solidariedade. É uma bolsa roída pelas traças...
Pe. Itacir Brassiani msf
Assim, a vocação presbiteral, quando vivida com empenho e pessoal e com autenticidade, presta um grande serviço a todo o povo de Deus: revela que todas as formas de vida cristã – a vida clerical, a vida consagrada e a vida laical – têm uma irrenunciável dimensão de serviço aos irmãos e irmãs. Mas esta vocação específica só conseguirá cumprir bem sua missão se souber confrontar-se permanentemente com a pessoa de Jesus e seu Evangelho, se se deixar revestir do novo homem revelado em Jesus.
Esta é também a sabedoria que todos desejamos e necessitamos: a capacidade de avaliar corretamente o valor de todas as coisas, tanto os bens econômicos como os cargos e as funções, assim como o tempo histórico que vivemos. O salmista lembra que aos olhos de Deus mil anos podem representar menos que o dia de ontem, e que o aparente vigor da nossa vida é enganoso e nós podemos murchar e desaparecer na tarde que se aproxima. Precisamos aprender a contar bem os nossos dias!
E contar bem os nossos dias significa também colocar os bens econômicos no seu devido lugar. Um projeto de vida fundamentado no acúmulo sem limites não tem fundamento. A ganância desmedida pode nos levar a devorar a natureza, a sacrificar amigos/as e familiares, a desorientar ou esterilizar a fé e, enfim, a perder a dimensão de gratuidade e solidariedade. É uma bolsa roída pelas traças...
Pe. Itacir Brassiani msf