(Eclo 31,15-17.20-22; Sl 33/34; 2Tm 4,6-8.16-18; Lc 18,9-14)(24.10.2010)Pe. Itacir Bassiani
Há mais de 80 anos, a Igreja católica dedica o penúltimo domingo do mês de outubro à oração pelas missões. No Brasil, todo o mês de outubro é dedicado especialmente à reflexão e à animação missionárias. Somos convidados/as a celebrar a memória do Senhor e a ouvir sua Palavra sintonizando o bater do nosso coração, o ritmo dos nossos passos e o olhar da fé com a missão. Que nossa oração evite a presunção da superioridade e brote da humilde consciência de que, infelizmente, o coração de nossas comunidades ainda não bate ao ritmo da missão. Mas, acima de tudo, confirmemos nosso engajamento no projeto de Deus que deseja, como diz Bento XVI, “que todo gênero humano constitua um só povo de Deus, se congregue num só corpo de Cristo e se edifique num só templo do Espírito Santo”.
“O Senhor é um juiz que não faz discriminação de pessoas.”
Por mais que se queira negar ou maquiar, nosso mundo está estruturalmente dividido. Não é necessário viajar pelo mundo a fora para perceber que, em termos gerais, os países do hemisfério norte, outrora denominados Primeiro Mundo, vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto que os países do hemisfério sul são condenados a digerir a miséria à qual a secular expropriação os condenou. Esta divisão se mantém hoje através das barreiras legais impostas aos migrantes que fogem do sul.
Existem também divisões entre pessoas e grupos sociais. Não se trata apenas de diferença – que é um valor e um direito a ser defendido – entre pessoas, etnias e grupos, mas de divisão que hierarquiza e exclui muita gente. Basta lembrar da primazia que a cultura e os meios de comunicação dão às pessoas e grupos ocidentais, brancos, masculinos, cultos e ricos. É evidente que os orientais, os negros e índios, as mulheres, os analfabetos e os pobres são tratados como inferiores.
Quando sublinhamos a evidência desta divisão, vozes se levantam acusando-nos de filo-marxistas, tendenciosos e interesseiros. Mas é preciso lembrar que a Palavra de Deus não faz olho grande frente a esta divisão. Ao contrário, a bíblia inteira, especialmente os escritos proféticos e os evangelhos, mostram que Deus denuncia essa divisão como inaceitável e toma partido em favor das pessoas e grupos mais fracos: os escravos e estrangeiros, as viúvas e os órfãos, os pobres e os excluídos.
“Dois homens subiram ao templo para rezar.”
Esta divisão entra também dentro das nossas igrejas? Infelizmente, devemos dizer que sim. Para confirmar, basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às Igrejas européias – à teologia, ao direito e à liturgia por elas elaboradas – no confronto com as Igrejas do (mal dito) Terceiro Mundo. Não obstante a notável ajuda econômica que as primeiras versam nos cofres vazios das segundas, não é raro ouvir ainda hoje de altos hierarcas que todos os cristãos devem assimilar a fé na sua versão européia.
E tem ainda aquela profunda e dolorida divisão – que às vezes se transforma em oposição e em condenação recíproca – entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas (católicas e evangélicas) e igrejas pentecostais, etc. Como pode ser agradável a Deus um culto no qual membros desta ou daquela igreja se gloriam de não ser como os outros: idólatras, mal-intencionados, interesseiros, exploradores da fé do povo?
A este propósito é impressionante o testemunho do apóstolo Paulo. Ele combate com tenacidade a postura de superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica em relação aos pagãos ou aos cristãos vindos do paganismo. Quando ele escreve, em forma de testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé, está se referindo à sua convição de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
“A prece do humilde atravessa as nuvens...”
No centro do evangelho de hoje está a questão da correta atitude de quem reza. Se, no último domingo, Jesus nos pedia para não desistir de rezar, hoje ele nos pede atenção sobre como rezamos. Em forma de parábola, Jesus confronta a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e perfeição, isolado das pessoas comuns, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos, colaborador do poder estrangeiro, impuro e execrável aos olhos dos judeus nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo.
Desejoso de ser visto e reconhecido, o fariseu reza de pé e olha os demais de cima para baixo; sua oração é uma espécie de auto-elogio e, ao mesmo tempo, desprezo e condenação dos demais; é como se fosse o próprio Deus que devesse agradecê-lo por ser tão bom e correto. O publicano praticamente não entra no templo e, sem coragem mesmo de levantar os olhos, bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se compadeça.
É bem possível que estas diferentes posturas na oração não seja um problema somente do judaísmo. Se Lucas nos traz esta questão é porque ela estava presente também nas comunidades cristãs. A ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva discriminação, contaminaram também os cristãos e infelizmente resistem, como erva daninha difícil de erradicar, até nossos dias. E quase sempre vêm revestidas com a atraente roupagem da piedade.
“O pobre clama a Deus e ele escuta...”
Desde a parábola de Abel e Caim , sentimo-nos incomodados diante da imagem de um Deus que não trata a todas as pessoas do mesmo modo. Imaginamos um deus com os olhos vedados, como a clássica imagem da justiça. Como diante da lei todos seriam iguais, a justiça não pode ter preferências. Mas Deus não é assim. “Ele não é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa suas mágoas.”
A humanidade que queremos única começa a ser gerada exatamente quando, em nome de Deus, evitamos a parcialidade que relega os fracos a um sofrimento contínuo e assumimos a luta pelos seus direitos não reconhecidos ou não atendidos. A sonhada humanidade chamada a ser única família não será uma realidade enquanto insistirmos numa igualdade apenas formal das pessoas, uma igualdade negada descaradamente pelas escandalosas desigualdades econômicas, sociais e culturais.
Voltemos a Abel e Caim (cf. Gn 4,1-16). Abel é pastor, não tem terra, vive como migrante, numa insegurança estrutural. Caim é agricultor, administra uma propriedade, goza de estabilidade. Não há porque estranhar quando o texto sagrado diz que “o Senhor olhou para Abel e sua oferta, mas não deu atenção a Caim com sua oferta”. O que Caim era realmente acaba vindo à tona logo em seguida: se mostra absolutamente indiferente e mortalmente violento com seu irmão.
“Ele fez com que a mensagem fosse anunciada integralmente...”
A humanidade está vocacionada a ser uma só família. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo, mas é preciso lutar para que se torne um valor assimilado subjetivamente. Todos sabemos que um acontecimento econômico relevante nos EUA repercute positiva ou negativamente em todo o globo, e que uma crise política no Oriente Médio agita as bolsas de valores e, interferindo na cotação do petróleo, penaliza os produtores dos mais remotos rincões do mundo. A interdependência é um fato.
Mas o desafio – e nisso a missão dos cristãos pode contribuir enormemente! – é transformar esta solidariedade num valor a ser positivamente buscado e assegurado em favor de todos. A dignidade da pessoa humana independe de sua origem étnica, pertença religiosa, nacionalidade, convicção política, identidade sexual ou grau de instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem, complementam e enriquecem.
“Combati o bom combate, completei a corrida...”
Voltemos ao início: quando rezamos não podemos querer consolidar nossa pretensa superioridade (pessoal ou eclesial), nem passar panos quentes ou até alimentar a divisão real que fere os filhos e filhas de Deus. Por isso, amável Deus Pai-Mãe, que fazes a prece do humilde atravessar as nuvens, despoja-nos de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar teu Evangelho integralmente e contribuir eficazmente para a solidariedade fraterna entre pessoas, religiões e povos. Até que a humanidade seja de fato uma família, na qual todos os membros são queridos e respeitados.
Há mais de 80 anos, a Igreja católica dedica o penúltimo domingo do mês de outubro à oração pelas missões. No Brasil, todo o mês de outubro é dedicado especialmente à reflexão e à animação missionárias. Somos convidados/as a celebrar a memória do Senhor e a ouvir sua Palavra sintonizando o bater do nosso coração, o ritmo dos nossos passos e o olhar da fé com a missão. Que nossa oração evite a presunção da superioridade e brote da humilde consciência de que, infelizmente, o coração de nossas comunidades ainda não bate ao ritmo da missão. Mas, acima de tudo, confirmemos nosso engajamento no projeto de Deus que deseja, como diz Bento XVI, “que todo gênero humano constitua um só povo de Deus, se congregue num só corpo de Cristo e se edifique num só templo do Espírito Santo”.
“O Senhor é um juiz que não faz discriminação de pessoas.”
Por mais que se queira negar ou maquiar, nosso mundo está estruturalmente dividido. Não é necessário viajar pelo mundo a fora para perceber que, em termos gerais, os países do hemisfério norte, outrora denominados Primeiro Mundo, vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto que os países do hemisfério sul são condenados a digerir a miséria à qual a secular expropriação os condenou. Esta divisão se mantém hoje através das barreiras legais impostas aos migrantes que fogem do sul.
Existem também divisões entre pessoas e grupos sociais. Não se trata apenas de diferença – que é um valor e um direito a ser defendido – entre pessoas, etnias e grupos, mas de divisão que hierarquiza e exclui muita gente. Basta lembrar da primazia que a cultura e os meios de comunicação dão às pessoas e grupos ocidentais, brancos, masculinos, cultos e ricos. É evidente que os orientais, os negros e índios, as mulheres, os analfabetos e os pobres são tratados como inferiores.
Quando sublinhamos a evidência desta divisão, vozes se levantam acusando-nos de filo-marxistas, tendenciosos e interesseiros. Mas é preciso lembrar que a Palavra de Deus não faz olho grande frente a esta divisão. Ao contrário, a bíblia inteira, especialmente os escritos proféticos e os evangelhos, mostram que Deus denuncia essa divisão como inaceitável e toma partido em favor das pessoas e grupos mais fracos: os escravos e estrangeiros, as viúvas e os órfãos, os pobres e os excluídos.
“Dois homens subiram ao templo para rezar.”
Esta divisão entra também dentro das nossas igrejas? Infelizmente, devemos dizer que sim. Para confirmar, basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às Igrejas européias – à teologia, ao direito e à liturgia por elas elaboradas – no confronto com as Igrejas do (mal dito) Terceiro Mundo. Não obstante a notável ajuda econômica que as primeiras versam nos cofres vazios das segundas, não é raro ouvir ainda hoje de altos hierarcas que todos os cristãos devem assimilar a fé na sua versão européia.
E tem ainda aquela profunda e dolorida divisão – que às vezes se transforma em oposição e em condenação recíproca – entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas (católicas e evangélicas) e igrejas pentecostais, etc. Como pode ser agradável a Deus um culto no qual membros desta ou daquela igreja se gloriam de não ser como os outros: idólatras, mal-intencionados, interesseiros, exploradores da fé do povo?
A este propósito é impressionante o testemunho do apóstolo Paulo. Ele combate com tenacidade a postura de superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica em relação aos pagãos ou aos cristãos vindos do paganismo. Quando ele escreve, em forma de testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé, está se referindo à sua convição de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
“A prece do humilde atravessa as nuvens...”
No centro do evangelho de hoje está a questão da correta atitude de quem reza. Se, no último domingo, Jesus nos pedia para não desistir de rezar, hoje ele nos pede atenção sobre como rezamos. Em forma de parábola, Jesus confronta a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e perfeição, isolado das pessoas comuns, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos, colaborador do poder estrangeiro, impuro e execrável aos olhos dos judeus nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo.
Desejoso de ser visto e reconhecido, o fariseu reza de pé e olha os demais de cima para baixo; sua oração é uma espécie de auto-elogio e, ao mesmo tempo, desprezo e condenação dos demais; é como se fosse o próprio Deus que devesse agradecê-lo por ser tão bom e correto. O publicano praticamente não entra no templo e, sem coragem mesmo de levantar os olhos, bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se compadeça.
É bem possível que estas diferentes posturas na oração não seja um problema somente do judaísmo. Se Lucas nos traz esta questão é porque ela estava presente também nas comunidades cristãs. A ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva discriminação, contaminaram também os cristãos e infelizmente resistem, como erva daninha difícil de erradicar, até nossos dias. E quase sempre vêm revestidas com a atraente roupagem da piedade.
“O pobre clama a Deus e ele escuta...”
Desde a parábola de Abel e Caim , sentimo-nos incomodados diante da imagem de um Deus que não trata a todas as pessoas do mesmo modo. Imaginamos um deus com os olhos vedados, como a clássica imagem da justiça. Como diante da lei todos seriam iguais, a justiça não pode ter preferências. Mas Deus não é assim. “Ele não é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa suas mágoas.”
A humanidade que queremos única começa a ser gerada exatamente quando, em nome de Deus, evitamos a parcialidade que relega os fracos a um sofrimento contínuo e assumimos a luta pelos seus direitos não reconhecidos ou não atendidos. A sonhada humanidade chamada a ser única família não será uma realidade enquanto insistirmos numa igualdade apenas formal das pessoas, uma igualdade negada descaradamente pelas escandalosas desigualdades econômicas, sociais e culturais.
Voltemos a Abel e Caim (cf. Gn 4,1-16). Abel é pastor, não tem terra, vive como migrante, numa insegurança estrutural. Caim é agricultor, administra uma propriedade, goza de estabilidade. Não há porque estranhar quando o texto sagrado diz que “o Senhor olhou para Abel e sua oferta, mas não deu atenção a Caim com sua oferta”. O que Caim era realmente acaba vindo à tona logo em seguida: se mostra absolutamente indiferente e mortalmente violento com seu irmão.
“Ele fez com que a mensagem fosse anunciada integralmente...”
A humanidade está vocacionada a ser uma só família. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo, mas é preciso lutar para que se torne um valor assimilado subjetivamente. Todos sabemos que um acontecimento econômico relevante nos EUA repercute positiva ou negativamente em todo o globo, e que uma crise política no Oriente Médio agita as bolsas de valores e, interferindo na cotação do petróleo, penaliza os produtores dos mais remotos rincões do mundo. A interdependência é um fato.
Mas o desafio – e nisso a missão dos cristãos pode contribuir enormemente! – é transformar esta solidariedade num valor a ser positivamente buscado e assegurado em favor de todos. A dignidade da pessoa humana independe de sua origem étnica, pertença religiosa, nacionalidade, convicção política, identidade sexual ou grau de instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem, complementam e enriquecem.
“Combati o bom combate, completei a corrida...”
Voltemos ao início: quando rezamos não podemos querer consolidar nossa pretensa superioridade (pessoal ou eclesial), nem passar panos quentes ou até alimentar a divisão real que fere os filhos e filhas de Deus. Por isso, amável Deus Pai-Mãe, que fazes a prece do humilde atravessar as nuvens, despoja-nos de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar teu Evangelho integralmente e contribuir eficazmente para a solidariedade fraterna entre pessoas, religiões e povos. Até que a humanidade seja de fato uma família, na qual todos os membros são queridos e respeitados.
Pe. Itacir Brassiani msf
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