O ano litúrgico católico termina com a festa de Cristo, Rei do Universo. Desde o final do século XIX algumas comunidades católicas vinham propondo a celebração de Cristo Rei para propagar a dignidade de Jesus Cristo, afirmar os direitos da Igreja frente à sociedade liberal e destacar a importância da doutrina cristã na formulação das leis civis. Essa festa acabou sendo instituída oficialmente em 1955, pelo Papa Pio XII. Hoje temos consciência de que é preciso evitar toda forma de triunfalismo e, ao mesmo tempo, destacar o mistério de Jesus Cristo que, com sua paixão pelo povo e sua vida doada aos marginalizados, venceu a opressão e a morte e inaugurou um Novo Tempo, regido pela paz, pela solidariedade e pela partilha. O que predomina é a utopia do bom rei que, como o bom pastor, vela sobre seu povo e o governa na justiça e na paz.
“Quando o filho do homem vier na sua glória...”
Para falar de Jesus e expressar o que ele significa sempre recorremos a imagens e comparações vindas da nossa experiência e da nossa cultura. Desde o tempo dos primeiros discípulos a comunidade cristã usou títulos e nomes correntes para expressar o mistério inesgotável da pessoa e do evento Jesus Cristo, consciente de que nenhum deles conseguia expressar com exatidão seu significado e sua relevância. Estes títulos e nomes às vezes mais escondem do que revelam a novidade de Jesus Cristo.
O título de Messias ajudava a sublinhar seu caráter de líder ungido e enviado por Deus para realizar sua obra libertadora. Chamando-o Mestre as comunidades destacavam sua a relação pedagógica com os/as seguidores/as. A imagem de Pastor serviu para ressaltar a proximidade, o conhecimento, o cuidado e a postura frente ao povo. Ao atribuir-lhe o título de Filho de Deus os cristãos afirmavam a convergência de sua ação com a ação de Deus e contestavam essse mesmo reconhecimento aos reis e imperadores.
Mas podemos afirmar com relativa segurança que Jesus evitou a maioria dos títulos que lhe davam, e preferiu autoapresentar-se como Filho do Homem, ou seja, como fundamentalmente humano e portador de humanidade. Parece que ele queria evitar o risco de entenderem-no de modo muito espiritualizado ou politizado. E preferiu falar de si mesmo em termos mais neutros, mostrando o que era e o que queria mais através da prática que de discursos, títulos e nomes.
“Julgarei entre ovelha e outra, entre carneiros e bodes...”
O trecho do Evangelho proclamado na festa de Cristo Rei é um dos ‘discursos escatológicos’ de Jesus. Esse gênero de anúncio se presta para falar não propriamente daquilo que deve acontecer no fim do mundo, mas para apresentar aquilo que realmente vale enquanto dura nossa vida no mundo. Esse discurso de Jesus nos leva imaginariamente ao fim dos tempos para destacar o que realmente tem valor no percurso da história.
Neste final imaginário da história, Mateus nos apresenta Jesus através das metáforas do rei e do juiz. Quando o evangelista fala que o Filho do Homem virá ‘na sua glória’ e se sentará em se ‘trono glorioso’ está comparando Jesus com um rei. “Então o rei dirá aos que estão à sua direita...” E a expressão ‘Senhor’ tem essencialmente o mesmo sentido, pois esse era o apelativo com que o povo se dirigia aos reis, imperadores e chefes locais.
Esta parábola também aproxima Jesus da imagem do juiz, e isso é compreensível numa cultura que atribuía ao rei as funções legislativas, executivas e judiciárias. “Todos os povos serão reunidos diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.” A ação de julgar consiste em discernir o verdadeiro valor das ações concretas das pessoas, as quais são separadas em dois grupos, a partir daquilo que fizem e não dos títulos honoríficos ou das meras intenções.
O trecho do Evangelho proclamado na festa de Cristo Rei é um dos ‘discursos escatológicos’ de Jesus. Esse gênero de anúncio se presta para falar não propriamente daquilo que deve acontecer no fim do mundo, mas para apresentar aquilo que realmente vale enquanto dura nossa vida no mundo. Esse discurso de Jesus nos leva imaginariamente ao fim dos tempos para destacar o que realmente tem valor no percurso da história.
Neste final imaginário da história, Mateus nos apresenta Jesus através das metáforas do rei e do juiz. Quando o evangelista fala que o Filho do Homem virá ‘na sua glória’ e se sentará em se ‘trono glorioso’ está comparando Jesus com um rei. “Então o rei dirá aos que estão à sua direita...” E a expressão ‘Senhor’ tem essencialmente o mesmo sentido, pois esse era o apelativo com que o povo se dirigia aos reis, imperadores e chefes locais.
Esta parábola também aproxima Jesus da imagem do juiz, e isso é compreensível numa cultura que atribuía ao rei as funções legislativas, executivas e judiciárias. “Todos os povos serão reunidos diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.” A ação de julgar consiste em discernir o verdadeiro valor das ações concretas das pessoas, as quais são separadas em dois grupos, a partir daquilo que fizem e não dos títulos honoríficos ou das meras intenções.
“Eis que eu mesmo buscarei minhas ovelhas e tomarei conta delas...”
Na análise da parábola em questão não podemos esquecer de algo que é mais que um detalhe: mesmo no papel de juiz, Jesus age como pastor. Os evangelhos nos mostram que Jesus decidiu sentar-se definitivamente à mesa como conviva dos pecadores, e não como juiz na mesa do tribunal. Sua vida inteira comprova que ele foi ao encontro e assumiu a causa dos marginalizados. Ele não os esperou sentado na cadeira pretensamente neutra dos juízes.
A bela imagem usada pelo profeta Ezequiel nos ajuda nessa perspectiva. Ele nos diz que Deus promete agir em primeira pessoa para conduzir seu rebanho às pastagens e ao repouso, cuidando da ovelha machucada e fortalecendo a ovelha enfraquecida. Deus cuida do seu povo e garante-lhe vida e segurança. Mas, fazendo isso, não deixa de agir lucidamente como juiz: “Vou julgar entre ovelha e ovelha, entre carneiros e bodes...” Sempre há lobos que se fazem passar por ovelhas...
Ampliando o nosso olhar para além dos textos de hoje, é importante lembrar que, além de se apresentar como pastor, juiz e filho do homem, Jesus se identifica com o servo. João Batista o anuncia como ‘cordeiro de Deus’, como aquele que dá a vida em resgate por muitos. E no confronto com as autoridades do seu tempo e com as ambições de poder dos próprios discípulos, o próprio Jesus declara: “Eu estou no meio de vocês como quem está servindo” (Lc 22,27).
Na análise da parábola em questão não podemos esquecer de algo que é mais que um detalhe: mesmo no papel de juiz, Jesus age como pastor. Os evangelhos nos mostram que Jesus decidiu sentar-se definitivamente à mesa como conviva dos pecadores, e não como juiz na mesa do tribunal. Sua vida inteira comprova que ele foi ao encontro e assumiu a causa dos marginalizados. Ele não os esperou sentado na cadeira pretensamente neutra dos juízes.
A bela imagem usada pelo profeta Ezequiel nos ajuda nessa perspectiva. Ele nos diz que Deus promete agir em primeira pessoa para conduzir seu rebanho às pastagens e ao repouso, cuidando da ovelha machucada e fortalecendo a ovelha enfraquecida. Deus cuida do seu povo e garante-lhe vida e segurança. Mas, fazendo isso, não deixa de agir lucidamente como juiz: “Vou julgar entre ovelha e ovelha, entre carneiros e bodes...” Sempre há lobos que se fazem passar por ovelhas...
Ampliando o nosso olhar para além dos textos de hoje, é importante lembrar que, além de se apresentar como pastor, juiz e filho do homem, Jesus se identifica com o servo. João Batista o anuncia como ‘cordeiro de Deus’, como aquele que dá a vida em resgate por muitos. E no confronto com as autoridades do seu tempo e com as ambições de poder dos próprios discípulos, o próprio Jesus declara: “Eu estou no meio de vocês como quem está servindo” (Lc 22,27).
“Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos....”
O mais importante, porém, está um pouco escondido na instigante parábola que ouvimos. Diante da pergunta sobre o momento e a forma concreta de servir a Jesus, ele responde: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram...” Jesus é filho da humanidade, irmão dos homens e mulheres, mais concretamente: irmão daqueles que passam fome e sede, dos migrantes e doentes, dos pobres e presidiários.
Mais que como pastor ou juiz, Jesus se revela como irmão. Ele não se envergonha de ser nosso irmão e nos tratar como tal (cf. Hb 2,11). É desse modo – fazendo-se próximo o identificando-se solidariamente com os últimos – que Jesus nos revela o que realmente tem valor e pode nos salvar. Interrogando-nos sobre nossa atitude diante dos sofredores e marginalizados, ele nos ajuda discernir se estamos entre os ‘benditos do Pai’ ou com os malfeitores, com ele ou contra ele.
O mais importante, porém, está um pouco escondido na instigante parábola que ouvimos. Diante da pergunta sobre o momento e a forma concreta de servir a Jesus, ele responde: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram...” Jesus é filho da humanidade, irmão dos homens e mulheres, mais concretamente: irmão daqueles que passam fome e sede, dos migrantes e doentes, dos pobres e presidiários.
Mais que como pastor ou juiz, Jesus se revela como irmão. Ele não se envergonha de ser nosso irmão e nos tratar como tal (cf. Hb 2,11). É desse modo – fazendo-se próximo o identificando-se solidariamente com os últimos – que Jesus nos revela o que realmente tem valor e pode nos salvar. Interrogando-nos sobre nossa atitude diante dos sofredores e marginalizados, ele nos ajuda discernir se estamos entre os ‘benditos do Pai’ ou com os malfeitores, com ele ou contra ele.
“Senhor, quando foi que não te servimos?...”
Aprecio muito uma proposta que Dom Hélder Câmara apresentou durante o Concílio Vaticano II, sugerindo que se criasse a festa litúrgica de Cristo Servo, para corrigir os excessos da festa de Cristo Rei e recordar esse aspecto essencial da vida de Jesus de Nazaré. São Paulo lembra que Jesus reina destruindo os poderes, rebaixando os poderosos e destruindo os mecanismos de morte. Ele reina fazendo-se servo de todos e doando sua vida para que o mundo viva.
E ele reina servindo através santos como os mártires das Missões (+19.11.1628), de lutadores como Zumbi (+20.11.1695), Marçal de Souza (+25.11.1983), e de milhões de leigos e leigas, cujo dia hoje celebramos. Como cristãos, nosso desejo é amar e servir Nosso Senhor Jesus Cristo, e o fazemos amando e servindo as pessoas necessitadas que nos redeiam. É desde a necessidade dessas pessoas concretas que ele reina e exerce seu senhorio sobre nossos interesses, ambições, medos e egoísmos.
Nem a beleza lírica do Salmo 22/23 destoa deste horizonte hermenêutico. São os pobres, aos quais falta tudo, que cantam com ousadia: “O Senhor é o meu pastor, nada me falta.” São os cansados que recobram forças diante da sua presença. São as pessoas socialmente desprotegidas que se sentem seguras à simples visão do seu cajado. São os grupos sociais excluídos e perseguidos que se descobrem convidados a uma mesa farta e acompanhados diariamente pela graça e pela felicidade.
“Vinde, benditos de meu Pai!...”
Deus pai e mãe, pastor do rebanho e protetor dos pequenos, neste dia em que celebramos meio sem jeito teu Filho como Rei do Universo, te pedimos: purifica nossa liturgia e nossa mente e a das autoridades da Igreja de todo desejo de honra e de poder; confirma-nos no lugar do servo, o lugar que teu Filho ocupou e que não lhe será tirado; fortalece os leigos e leigas que, de mil e uma maneiras, tornam efetivo o reinado de Jesus Cristo e transformam o mundo; e concede a todos/as nós a graça de te reconhecer, amar e servir atenta e delicadamente nos nossos irmãos e irmãs. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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