quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A paz para todos nasce da justiça de cada um.

A festa da noite de ontem se prolongou madrugada adentro e na manhã de hoje tudo está mais silencioso. Aproveite-mos, pois, para compreender o sentido do Natal colocando entre parênteses os apelos e ofertas do mercado natalício e pedindo ajuda aos primeiros cristãos. Por trás do hino do primeiro capítulo do Evangelho segundo João e dos primeiros versículos da carta aos Hebreus está uma experiência concreta e uma profissão de fé amadurecida numa busca longa e intensa, em meio a conflitos e perseguições. O coração desta experiência proclamada como Boa Notícia é a manifestação da glória de Deus na vulnerabilidade da carne humana e, nela, a oferta de paz duradoura e de libertação graciosa e universal de Deus em favor de todos os seres humanos, indistintamente.
“E a Palavra se dez carne e veio habitar entre nós.”
Tudo parte da gruta de Belém e nela se sustenta. Mas não menos viva é a memória da vida inteira de Jesus, seu anúncio e sua ação polêmica e libertadora, sua condenação e morte na cruz dos proscritos. João tem isso presente quando nos fala da Palavra que estava junto de Deus e que era Deus, que é a luz que brilha e vence as trevas, que se faz carne e vem habitar entre nós, que torna visível o Deus invisível. E o mesmo ocorre com o autor da carta aos Hebreus, quando afirma que Jesus exprime o ser de Deus.
Recordemos a poética narração de Lucas, proclamada na celebração da vigília da noite passada. Forçados pelo Imperador Augusto, Maria e José tiveram que ir a Belém e, completado o tempo da gravidez e sem terem encontrado hospedagem, se abrigam numa estrebaria, onde Jesus é dado à luz. Proscritos pastores sabem do ocorrido e acorrem ao estábulo, onde encontram o casal e um recém-nascido envolto em panos e acomodado numa cocheira. Seria propriamente esta a glória de Deus?
“E a Luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.”
Perguntemos aos irmãos e irmãs da primeira hora pelo sentido deste acontecimento histórico. Na carta aos Hebreus, a comunidade cristã, amadurecida às custas da perseguição e da perseverança, dá seu testemunho afirmando que através de Jesus, nascido na pobreza e perseguido pelos poderes políticos e religiosos, Deus nos falou de modo definitivo. Ele é a expressão da glória de Deus e o próprio dinamismo que sustenta as buscas de paz e de comunhão de todo o universo.
A comunidade joanina vai na mesma linha da comunicação, dizendo que na vida de Jesus é pronunciada definitivamente a Palavra divina: é uma Palavra que gera dinamismos de Vida que ilumina a humanidade; que vence as forças que a ela se opõem; que transforma os/as escravos/as em filhos/as. Nesta Palavra feita carne humana e hóspede do mundo, vemos a glória de Deus, o qual estabelece conosco uma aliança baseada na gratuidade e na verdade.
“A quantos a acolheram, deu-lhes poder de se tornarem filhos/as de Deus.”
As imagens e conceitos são vários e complementares. Prestemos atenção a três delas: Palavra, Vida e Graça. Enquanto Palavra, Jesus é a exteriorização da interioridade de Deus, e esse mistério interior não é uma lei, uma advertência ou uma doutrina, mas uma boa notícia que produz felicidade. A Palavra de Deus assume a carne humana e a vida histórica e corporal de Jesus como tenda na qual os homens e mulheres podem encontrar, tocar e acolher o próprio mistério de Deus.
O mesmo Jesus, filho de Maria e de José, que nasceu em Belém e viveu como carpinteiro em Nazaré, que reuniu discípulos/as e foi por eles abandonado em Jerusalém, é portador da Vida plena e eterna, do bem viver desejado por todas as criaturas. Nele o bem viver ou a Vida é revelada e doada como comunhão profunda com o mistério de Deus, comunhão solidária com todas os pobres e as vítimas e comunhão graciosa com todas as criaturas.
Na pessoa e no caminho histórico de Jesus de Nazaré, vislumbramos também a Graça de Deus, graça manifestada e encarnada. Nele recebemos a boa notícia de que Deus não é um cobrador de dívidas ou um juiz frio e calculista, mas um irmão e um hóspede que se rege pela gratuidade e pelo dom. A lei e a cobrança implacáveis vêm das velhas instituições, mas a Graça e a Verdade nós as recebemos por Jesus Cristo. Nele, todos/as recebemos graças e mais graças... Ele mesmo é a graça e a gratuidade de Deus!
“Nós vimos a sua glória...”
Tanto a comunidade de João como a da carta aos Hebreus fala de Jesus de Nazaré como glória. “Ele é o explendor da glória do Pai, a expressão do seu ser”, diz a carta. “Nós vimos a sua (da Palavra feita carne) glória, glória como do Filho único da parte do Pai”, diz João. O que esta expressão pode comunicar sobre o Filho de Deus que se revela no presépio de Belém, na carpintaria da Galiléia, na família de Nazaré e na via-crucis de Jerusalém?
Em hebraico, glória (kabôd: peso, valor, brilho) é uma palavra que exprime a importância e o valor interior de uma pessoa, que se revela nas ações e requer o respeito dos outros. Ver a glória de Deus significa testemunhar sua ação salvífica e libertadora, reconhecer sua santidade nos acontecimentos históricos. A metáfora da luz é frequentemente usada para materializar a glória de Deus, como aparece no relato do nascimento de Jesus (cf. Lc 2,9).
A tradição cristã afirma com ousadia que a glória de Deus se manifesta de modo incomparável e insuperável na crucifixão de Jesus, na sua fidelidade radical e amorosa à humanidade oprimida. Sendo a cruz o desfecho de uma inteira vida de amor, podemos dizer que na humanidade de Jesus vemos a glória de Deus. E os discípulos/as de Jesus são glorificados/as na medida em que participarm do dinamismo do seu amor ou paixão pelo mundo. Eis nosso brilho, nosso peso, nosso valor.
“Todos os confins da terra puderam ver a salvação.”
A liturgia natalina também nos ensina que universalidade e libertação são duas características essenciais do evento da encarnação do Filho de Deus. A festa do Natal de Jesus não pode ser reduzida a um evento voltado unicamente aos cristãos ou católicos, e menos ainda a um sentimento ou iluminação interior, bem ao gosto do individualismo e do misticismo pós-modernos. E não tem nada a ver também com as luzes coloridas e ofertas de consumo que abundam no mercado globalizado.
O profeta Isaías e o Salmo de meditação sublinham claramente tanto o caráter universal como a marca libertadora do nascimento de Jesus. Somos convidados a cantar porque Deus faz maravilhas, arregaça as manhas do seu braço santo e põe em movimento sua salvação. E são todos os confins da terra que vêem e experimentam esta salvação, e a terra inteira que é convocada a gritar, exultar e cantar hinos agradecidos. E João diz que todos quantos acolhem a Luz, podem se tornar filhos e filhas de Deus.
“Que beleza, pelas montanhas, os passos de quem traz boas notícias...”
Mas tudo isso não pode ser apenas sermão monótono ou doutrina abstrata. A fé que não é experiência vital se torna ideologia escravizadora. Partindo de uma libertação vivida como esperança e experiência de graça, o profeta Isaías se delicia contemplando os passos de quem corre sobre as montanhas anunciando boas notícias a um povo dominado e desolado. Ele vislumbra os guardas cantando em coral e um povo em ruínas explodindo de alegria diante do mensageiro que traz um edito de paz.
Pois o Natal é também a boa e definitiva notícia de que Deus deseja e promove uma paz duradoura, para todos e em todos os lugares. Bento XVI nos lembra oportunamente que a paz é dom a ser recebido e realidade a ser construída mediante a compaixão e a solidariedade. “A paz para todos nasce da justiça de cada um, e ninguém pode subtrair-se a este compromisso essencial de promover a justiça segundo as respectivas competências e responsabilidade”, diz o Papa na sua mensagem para o Ano Novo.
“Vamos explodir de alegria...”
Diante da tua pequenez gloriosa, Deus Menino, ajoelhamo-nos eternamente agradecidos/as. É desta tua glória que todos necessitamos. É este brilho que todos/as buscamos de forma inconsciente e quase desesperada. Tu nos ensinas que é armando a tenda dos nossos sonhos e palavras em meio à humanidade peregrina que alcançamos a liberdade e a plena realização. Obrigado por esta lição pronunciada na nossa carne. Queremos ser filhos/as desta luz. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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