(Gn 2,7-9; 3,1-7; Sl 50/51; Rm 5,12-19; Mt 4,1-11)
A Quaresma nasceu como batequese batismal, com o objetivo era iniciar os novos cristãos nos mistérios essenciais da vida cristã. Na liturgia renovada pelo Concílio Vaticano II este objetivo foi reassumido, agora como aprofundamento dos aspectos mais importantes da vida cristã. Há quase 50 anos, a Igreja do Brasil promove a Campanha da Fraternidade, propondo traços e contornos concretos para a permanente necessidade de conversão. Neste domingo, somos lembrados de que simples pão é incapaz de saciar-nos em profundidade, pois nossa fome é também de beleza, de justiça, de comunhão agradecida e responsável com o destino do Planeta. Mas a Palavra de Deus nos adverte também que a tentação que nos espreita é esta: subordinar Deus e sua vontade aos nossos interesses e caprichos. E o resultado palpável é um Planeta feito aos pedaços, moribundo e mortífero.
“Vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus...”
A poetiza e mística mineira Adélia Prado diz suspirando: “Para minha sede, o oceano não passa de uma gota...” Os psicólogos dizem que somos criaturas de desejo, e os filósofos preferem dizer que somos seres finitos, inacabados, abertos a caminho. O mundo, com todas suas coisas e experiências concretas, não nos satisfaz. Desejamos mais, desejamos tudo, ansiamos pelo Tudo. Somos como que um nó no qual se cruzam muitos fios. Mesmmo que de forma incosciente, estamos em comunhão com tudo e com todos.
É disso que trata a parábala do Paraíso. Adão e Eva habitam um jardim e têm à sua disposição plantas bonitas aos olhos e gostosas ao paladar. São modelados com o pó da terra e compartilham da bondade e da beleza das criaturas. Mas experimentam também o limite de não poderem provar do fruto da árvore do bem e do mal. Mas eles não se conformam com esta condição, e desejam mais. E provam o amargo sabor do mal quando imaginam saciar este vazio com alguma coisa.
A satisfação plena dos desejos aparece como delícia para os olhos e caminho para a sabedoria. Mas, experiência nos ensina dolorosamente que não conseguimos mais que tomar consciência de nossa própria nudez: somos seres irremediavelmente limitados, imperfeitos e incapazes de alcançar a plenitude. Mas isso não nos deve intimidar, pois próprio Deus é carência e vem ao nosso encontro. Ele é apaixonado pelo Nada que somos, pela Abertura vazia e carente que nos move para o Outro e para o Futuro.
“Jesus foi conduzido ao deserto...”
O deserto é uma metáfora da condição humana. Ele não representa apenas algumas situações de impotência e de crise mas a inteira condição humana: uma imensidão informe, ameaçadora, tentadora, misteriosa, dependente da água, e, ao mesmo tempo, uma realidade portadora de inúmeras possibilidades e belezas. Como a Jesus, o Espírito nos conduz a este deserto, nossa realidade mais profunda, o exigente espaço das tentações/tentativas de fuga.
Pouco antes, Jesus havia dito que era preciso cumprir toda a justiça, assumir a condição humana com todas as consequências, inclusive a incapacidade de realizar o Desejo mais profundo. Ele havia experimentado sua condição de Filho querido, precioso para o Pai. Mas parece que também a ele custa assimilar o essencial do ser humano: sua carência e impotência, a fome, a falta de imagens palpáveis de Deus. Sua tentação é expressar sua divindade e sua humanidade como saciedade, poder e manipulação de Deus.
Trata-se de um enfrentamento profundo ao qual também nós somos conduzidos. Como Jesus, fazemos tentativas mais ou menos desesperadas de preencher nosso Vazio, de fugir da condição humana, de ser uma espécie de deus. Mas Deus é muito diferente! Ele é como Fogo que queima em forma de Desejo insaciável, Abismo que fascina e atemoriza, imenso Vazio que nos acolhe como somos, Caminho que nos leva adiante de nos mesmos sem prometer nenhum ponto de chegada.
“Não porás à prova o Senhor te Deus!”
Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e e Homem verdadeiro, nos abre o caminho da Salvação, da realização plena. Ele relativiza as tentativas e vence a tentação de renegar nossa vulnerabilidade essencial e de realizar a vontade de Deus pelas vias do poder. Ele experimenta que nossa Fome radical só pode ser saciada pela Palavra que sai da boca de Deus, pela Utopia para a qual acena reiteradamente. Ele ensina que Deus vem em nosso auxílio exatamente quando renunciamos a pô-lo à prova.
A tentação humana expressa na parábola de Adão e Eva é a pretensão de assemelhar-se a um deus que pouco tem a ver com aquele que se revelou em Jesus Cristo, ou seja: um ser que pretensamente pode tudo, sabe tudo, preside tudo e é indeferente a tudo. É a tentação de negar a condição humana, e isso acaba levando-nos à perversão das relações com as pessoas, com as demais criaturas e com o próprio Deus. O resultado é a fé no desenvolvimento, a adesão ao ritual do consumo e o culto ao dinheiro.
O Desejo que move as entranhas de Deus é outro: tornar-se humano, assumir nossa condição em todos os seus mistérios e limites, aproximar-se e ser um de nós. Em Jesus de Nazaré este Desejo assume contornos históricos, com suas marcas de indefinição e de busca. Nele nos são reveladas, a um só tempo, o Desejo divino e a Vocação humana. O ser humano é êxodo do fechado egito dos medos e interesses e, ao mesmo tempo, advento de uma realidade aberta e solidária.
“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra...”
Deus e Homem não são nem estranhos, nem cocorrentes. Antes, são parceiros, parentes e companheiros. Em Jesus Cristo, a imagem segundo a qual somos criados/as, a vocação à qual somos chamados/as se mostra com clareza e concretude. Elm suas palavras e ações, lutas e buscas, louvores e clamores, distanciamentos e aproximações, ele expressa com clareza o que significa ser humano e como é Deus em si mesmo e para nós. E nós somos feitos semelhantes a esta imagem.
Desta semelhança de origem brota um idêntico modo de agir. A ação de Deus se rege pela criatividade e pelo cuidado. Para ele, o mundo não é um banco de recursos prontos para serem explorados pelos que podem, mas um jardim a ser cultivado e guardado responsavelmente. O núcleo do sonho de Deus para o mundo é a árvore da vida: dela todos as criaturas podem e devem se alimentar. As distorções e injustiças nascem da arrogância de quem quer decidir por si e para si mesmo o que é o bom e o que é ruim.
A questão central colocada pela liturgia de hoje é esta: quem define e orienta nossos projetos e ações, qual é o horizonte que dá sentido ao que fazemos? Somos nós mesmos, fechados em nossos medos e interesses individuais e grupais? O amor absoluto a si mesmo leva a relativizar tudo, vem do diabo, cristaliza os poderes e conduz à morte. O amor lúcido e profundo a Deus e à sua criaço leva à ruptura com os estreitos limites ideológicos, amplia a liberdade, vem de Deus e multiplica as forças da vida.
“Que me sustente um ânimo generoso...”
A reflexão da Campana da Fraternidade lembra que que o uso das criaturas para o nosso sustento e sobrevivência é imprescindível, pois o homem foi colocado como o zelador das coisas, mas tudo lhe ficou à disposição. “O problema está no uso indiscriminado das coisas, na gastança desmedida, no consumismo desenfreado das coisas, muitas vezes supérfluas. É necessário resgatar a sobriedade no consumo das coisas que nos são necessárias e evitar desperdícios” (Texto-Base, 85).
O mesmo Texto lembra que o atual paradigma de desenvolvimento, a humanidade consome 125% dos recursos que o Planeta pode efetivamente disponibilizar e ainda joga mais de 1 bilhão de pessoas na miséria. É impossível manter a atual escalada de consumo que se globaliza a passos largos. É preciso diminuir o consumo das elites para suprir as necessidades dos mais empobrecidos. Urge um novo paradigma civilizacional, baseado na solidariedade entre as pessoas e com o próprio Planeta (cf. 56-62).
Deus querido, Pai e Mãe de todas as criaturas. És altíssimo porque vieste para perto de nós e aqui quiseste permanecer. Em Jesus, teu filho e nosso irmão, revelaste quão profunda e vivificante é tua paternidade, que tem sabor de maternidade. Que teu Espírito nos conduza nas muitas travessias que nos esperam. Que ele nos ajude a encontrar na tua Palavra a orientação segura que nos impeça de transformar a religião numa ideologia que sustenta a exploração tanto dos seres humanos como da natureza. Que ele nos sustente na bela e exigente tarefa de gerar uma civilização baseada no consumo sóbrio e responsável e na solidariedade compassiva com todas as criaturas. E que ele nos liberte do medo da Vulnerabilidade, da terrível necessidade de sermos sempre o primeiro, o príncipe, o melhor, o superior. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf (13/03/11)
A Quaresma nasceu como batequese batismal, com o objetivo era iniciar os novos cristãos nos mistérios essenciais da vida cristã. Na liturgia renovada pelo Concílio Vaticano II este objetivo foi reassumido, agora como aprofundamento dos aspectos mais importantes da vida cristã. Há quase 50 anos, a Igreja do Brasil promove a Campanha da Fraternidade, propondo traços e contornos concretos para a permanente necessidade de conversão. Neste domingo, somos lembrados de que simples pão é incapaz de saciar-nos em profundidade, pois nossa fome é também de beleza, de justiça, de comunhão agradecida e responsável com o destino do Planeta. Mas a Palavra de Deus nos adverte também que a tentação que nos espreita é esta: subordinar Deus e sua vontade aos nossos interesses e caprichos. E o resultado palpável é um Planeta feito aos pedaços, moribundo e mortífero.
“Vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus...”
A poetiza e mística mineira Adélia Prado diz suspirando: “Para minha sede, o oceano não passa de uma gota...” Os psicólogos dizem que somos criaturas de desejo, e os filósofos preferem dizer que somos seres finitos, inacabados, abertos a caminho. O mundo, com todas suas coisas e experiências concretas, não nos satisfaz. Desejamos mais, desejamos tudo, ansiamos pelo Tudo. Somos como que um nó no qual se cruzam muitos fios. Mesmmo que de forma incosciente, estamos em comunhão com tudo e com todos.
É disso que trata a parábala do Paraíso. Adão e Eva habitam um jardim e têm à sua disposição plantas bonitas aos olhos e gostosas ao paladar. São modelados com o pó da terra e compartilham da bondade e da beleza das criaturas. Mas experimentam também o limite de não poderem provar do fruto da árvore do bem e do mal. Mas eles não se conformam com esta condição, e desejam mais. E provam o amargo sabor do mal quando imaginam saciar este vazio com alguma coisa.
A satisfação plena dos desejos aparece como delícia para os olhos e caminho para a sabedoria. Mas, experiência nos ensina dolorosamente que não conseguimos mais que tomar consciência de nossa própria nudez: somos seres irremediavelmente limitados, imperfeitos e incapazes de alcançar a plenitude. Mas isso não nos deve intimidar, pois próprio Deus é carência e vem ao nosso encontro. Ele é apaixonado pelo Nada que somos, pela Abertura vazia e carente que nos move para o Outro e para o Futuro.
“Jesus foi conduzido ao deserto...”
O deserto é uma metáfora da condição humana. Ele não representa apenas algumas situações de impotência e de crise mas a inteira condição humana: uma imensidão informe, ameaçadora, tentadora, misteriosa, dependente da água, e, ao mesmo tempo, uma realidade portadora de inúmeras possibilidades e belezas. Como a Jesus, o Espírito nos conduz a este deserto, nossa realidade mais profunda, o exigente espaço das tentações/tentativas de fuga.
Pouco antes, Jesus havia dito que era preciso cumprir toda a justiça, assumir a condição humana com todas as consequências, inclusive a incapacidade de realizar o Desejo mais profundo. Ele havia experimentado sua condição de Filho querido, precioso para o Pai. Mas parece que também a ele custa assimilar o essencial do ser humano: sua carência e impotência, a fome, a falta de imagens palpáveis de Deus. Sua tentação é expressar sua divindade e sua humanidade como saciedade, poder e manipulação de Deus.
Trata-se de um enfrentamento profundo ao qual também nós somos conduzidos. Como Jesus, fazemos tentativas mais ou menos desesperadas de preencher nosso Vazio, de fugir da condição humana, de ser uma espécie de deus. Mas Deus é muito diferente! Ele é como Fogo que queima em forma de Desejo insaciável, Abismo que fascina e atemoriza, imenso Vazio que nos acolhe como somos, Caminho que nos leva adiante de nos mesmos sem prometer nenhum ponto de chegada.
“Não porás à prova o Senhor te Deus!”
Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e e Homem verdadeiro, nos abre o caminho da Salvação, da realização plena. Ele relativiza as tentativas e vence a tentação de renegar nossa vulnerabilidade essencial e de realizar a vontade de Deus pelas vias do poder. Ele experimenta que nossa Fome radical só pode ser saciada pela Palavra que sai da boca de Deus, pela Utopia para a qual acena reiteradamente. Ele ensina que Deus vem em nosso auxílio exatamente quando renunciamos a pô-lo à prova.
A tentação humana expressa na parábola de Adão e Eva é a pretensão de assemelhar-se a um deus que pouco tem a ver com aquele que se revelou em Jesus Cristo, ou seja: um ser que pretensamente pode tudo, sabe tudo, preside tudo e é indeferente a tudo. É a tentação de negar a condição humana, e isso acaba levando-nos à perversão das relações com as pessoas, com as demais criaturas e com o próprio Deus. O resultado é a fé no desenvolvimento, a adesão ao ritual do consumo e o culto ao dinheiro.
O Desejo que move as entranhas de Deus é outro: tornar-se humano, assumir nossa condição em todos os seus mistérios e limites, aproximar-se e ser um de nós. Em Jesus de Nazaré este Desejo assume contornos históricos, com suas marcas de indefinição e de busca. Nele nos são reveladas, a um só tempo, o Desejo divino e a Vocação humana. O ser humano é êxodo do fechado egito dos medos e interesses e, ao mesmo tempo, advento de uma realidade aberta e solidária.
“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra...”
Deus e Homem não são nem estranhos, nem cocorrentes. Antes, são parceiros, parentes e companheiros. Em Jesus Cristo, a imagem segundo a qual somos criados/as, a vocação à qual somos chamados/as se mostra com clareza e concretude. Elm suas palavras e ações, lutas e buscas, louvores e clamores, distanciamentos e aproximações, ele expressa com clareza o que significa ser humano e como é Deus em si mesmo e para nós. E nós somos feitos semelhantes a esta imagem.
Desta semelhança de origem brota um idêntico modo de agir. A ação de Deus se rege pela criatividade e pelo cuidado. Para ele, o mundo não é um banco de recursos prontos para serem explorados pelos que podem, mas um jardim a ser cultivado e guardado responsavelmente. O núcleo do sonho de Deus para o mundo é a árvore da vida: dela todos as criaturas podem e devem se alimentar. As distorções e injustiças nascem da arrogância de quem quer decidir por si e para si mesmo o que é o bom e o que é ruim.
A questão central colocada pela liturgia de hoje é esta: quem define e orienta nossos projetos e ações, qual é o horizonte que dá sentido ao que fazemos? Somos nós mesmos, fechados em nossos medos e interesses individuais e grupais? O amor absoluto a si mesmo leva a relativizar tudo, vem do diabo, cristaliza os poderes e conduz à morte. O amor lúcido e profundo a Deus e à sua criaço leva à ruptura com os estreitos limites ideológicos, amplia a liberdade, vem de Deus e multiplica as forças da vida.
“Que me sustente um ânimo generoso...”
A reflexão da Campana da Fraternidade lembra que que o uso das criaturas para o nosso sustento e sobrevivência é imprescindível, pois o homem foi colocado como o zelador das coisas, mas tudo lhe ficou à disposição. “O problema está no uso indiscriminado das coisas, na gastança desmedida, no consumismo desenfreado das coisas, muitas vezes supérfluas. É necessário resgatar a sobriedade no consumo das coisas que nos são necessárias e evitar desperdícios” (Texto-Base, 85).
O mesmo Texto lembra que o atual paradigma de desenvolvimento, a humanidade consome 125% dos recursos que o Planeta pode efetivamente disponibilizar e ainda joga mais de 1 bilhão de pessoas na miséria. É impossível manter a atual escalada de consumo que se globaliza a passos largos. É preciso diminuir o consumo das elites para suprir as necessidades dos mais empobrecidos. Urge um novo paradigma civilizacional, baseado na solidariedade entre as pessoas e com o próprio Planeta (cf. 56-62).
Deus querido, Pai e Mãe de todas as criaturas. És altíssimo porque vieste para perto de nós e aqui quiseste permanecer. Em Jesus, teu filho e nosso irmão, revelaste quão profunda e vivificante é tua paternidade, que tem sabor de maternidade. Que teu Espírito nos conduza nas muitas travessias que nos esperam. Que ele nos ajude a encontrar na tua Palavra a orientação segura que nos impeça de transformar a religião numa ideologia que sustenta a exploração tanto dos seres humanos como da natureza. Que ele nos sustente na bela e exigente tarefa de gerar uma civilização baseada no consumo sóbrio e responsável e na solidariedade compassiva com todas as criaturas. E que ele nos liberte do medo da Vulnerabilidade, da terrível necessidade de sermos sempre o primeiro, o príncipe, o melhor, o superior. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf (13/03/11)
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