Hoje somos convidados/as a avançar na descoberta do mistério de Deus e do Ser Humano que se escondem e revelam em Jesus de Nazaré. Fazemos com uma serena e responsável consciência das nossas fragilidades, possibilidades e esperanças. Sabemos que a vida é como a flor do campo, tão bela quanto vulnerável. Desejamos ardentemente e escolhemos resolutamente a Vida para nós mesmos/as e para todas as criaturas, mas sabemos das ameaças às quais ela é submetida. Dietrich Bonhoefer, teólogo, pastor e mistico protestante, não quis se fingir de cego diante da violência mortal do nazismo e, em nome de sua fé, engajou-se no combate contra esta doença cultural e política. Seu jovem corpo, pendurado na forca em Flossenburg (+ 09.04.1945), continua denunciando as cegueiras do mundo e testemunhando a clarividência à qual todos/as somos chamados/as.
“Senhor, já cheira mal...”
Não é mais nova a notícia de que nosso planeta corre riscos. “O caminho tende à catástrofe planetária e podemos ir ao encontro do destino dos dinossauros” (CF 2011, n° 94). Vem de longe a denúncia de que o homem se tornou lobo do homem. E ressoa há muito tempo o grito que pede um basta ao violento processo de exclusão que se abate sobre a imensa maioria da humanidade. Este mundo de Deus se tornou um vale de lágrimas, adquiriu contornos de sepultura coletiva e está cheirando mal. As metáforas são fortes, mas não exageradas. Não podemos cair no pessimismo doentio daqueles que vêm em tudo as marcas do pecado, mas não há como ser ingênuo e se deixar seduzir pelo canto das sereias do neoliberalismo predatório. E a fuga numa piedade intimista, com suas crises e vazios de sentido, tem conotações de cegueira, indiferença e medo. E o que dizer da adesão ao fantasioso mundo da moralidade e de uma mal dita transcendência, onde o único probela é o pecado e a culpa?
“Vou tirar vocês de seus túmulos...”
Este é o irrenunciável ponto de partida, mas não o aspecto essencial da nossa fé. O coração dinâmico do cristianismo é a promessa – que em Jesus de Nazaré se torna prova e antecipação – de que Deus faz novas todas as coisas, de que ele muda deserto em jardim, rocha em fonte, caixão em berço, morte em vida, ruínas em cidade habitada, exilados em cidadãos. O movimento que nasce do Evangelho é promotor da vida, e cumpre esta missão abrindo horizontes e não chamando ao passado. Aos judeus que há décadas provavam o amargo sabor do exílio na Babilônia, haviam perdido toda esperança e comparavam sua condição à de um monte de ossos secos, Deus manda dizer: “Vou tirar vocês desta sepultura, dar-lhes meu espírito e levá-los de volta à própria terra...” É neste caminho de saída e retorno à autonomia como povo que eles ficarão sabendo de fato quem é Deus. E Jesus afirma que a adesão à sua pessoa e ao seu projeto abre uma nova era para a humanidade oprimida.
“Se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido...”
A sensação de fracasso e frustração, conhecida de todos nós, se faz refrão acusatório na voz de Marta e de Maria. A impressão é de que Jesus tenha feito pouco caso quando lhe avisaram: “Aquele que amas está doente”. Muitas vezes temos esta mesma sensação diante de doenças incuráveis, de acidentes trágicos, de mortes estúpidas, de catástrofes naturais. Na revolta gerada no ventre dor, alguns/as chegam a acusar Deus de ausente, desinteressado, cínico e sem coração. Mas sabemos que “Jesus amava Marta, a irmã dela e Lázaro”, assim como ele ama apaixonadamente cada uma das grandes ou pequenas criaturas do seu e nosso pai. Este é seu mundo e aqui é sua morada. Nós somos sua família, seus irmãos e irmãs, seus amigos e amigas, mesmo que ele não se deixe prender aos nossos desejos e interesses – nem sempre suficientemente abertos – nem se submeta às urgências do nosso calendário. Em Jesus nos descobrimos uma grande família, que inclui todas as criaturas.
“Se creres, verás a glória de Deus...”
Cedo ou tarde, Jesus chega para nos ajudar a mudar as coisas. Em Betância, ele encontra suas amigas em pranto, tristes tanto pela perda do irmão como pela ausência injustificável de Jesus. Mas Jesus não é prepotente nem indiferente: ele participa da humana dor das amigas, como faz também hoje diante de todos aqueles/as que choram, impotentes e inconsoláveis. “E Jesus começou a chorar...” É mediante a compaixão e a transformação que ele nos faz experimentar seu amor. “Vejam como ele o amava...” Eis aqui a porta que abre a possibilidade de mudança: o amor e a compaixão, tão divinos e tão humanos. Não se trata de apostar ou acreditar no poder de Deus, mas na força do seu amor. Da parte de Jesus de Nazaré, o amor que se compadece; da nossa parte, a confiança que abre horizontes e possibilidades. Da fé e da abertura ao amor brotam novas possibilidades de Vida e ressurreição. A fé é esta abertura radical para transcender o óbvio, o esperado, o devido. “Se você acreditar, verá a glória de Deus”. O que Jesus diz com esta afirmação? Pensamos geralmente que ele quer dizer que a fé nos ajuda a provar o poder de Deus agindo em nosso favor. Mas o que Marta e Maria presenciam é algo diferente: é a profunda e humana identificação de Jesus com suas dores. Esta é a glória de Deus: seu amor pela humanidade. A glória de Deus é o ser humano vivo, dizia Santo Irineu. A glória de deus brilha na beleza, na diversidade e na comunidade das suas criaturas.
“Lázaro, vem para fora!”
Jesus convida Maria a ultrapassar a dor que tende a obscurecer o olhar da fé. E Lázaro, no escuro da morte e no fundo da sepultura, também é interpelado: “Vem para fora!” O grito de Jesus, pronunciado no contexto de sua oração, nos chama à vida, a um olhar e um novo agir. É apelo a sair dos nossos interesses e projetos, geralmente nascidos no ventre do medo e da indiferença. É um convite a sair da prisão dos sistemas de poder e de morte e emprender um caminho, a fazer a passagem-páscoa. Mas nesta saída e em todo caminho nossos passos serão sempre necessariamente inseguros. Pertencemos à história e temos muitas amarras. Mas escutamos, de formas diversas, uma ordem: “Desamarrem e deixem que ele ande...” A fé em Jesus Cristo não é doutrina que fecha, peso que oprime, laço que amarra. Oxalá toda a Igreja aprenda esta lição! Como diz Paulo, crer é deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, que ressuscitou Jesus e dá vida ao nosso corpo marcado de morte. Este mesmo Espírito conduz toda a criação à sua própria plenitude, santificando tanto o gênero humano como a história e o universo como um todo. “O Espírito opera a obra da reconciliação no âmbito de toda a criação, agindo misteriosamente no interior de cada ser humano para que este, aos poucos, se configure a Cristo, o Primogênito da criação” (CF 2011, n° 170). Ele congrega as pessos isoladas de moso que sejam corpo de Cristo, e faz deste corpo a mediação de sua ação vivificadora no mundo.
“Muitos judeus viram o que Jesus fizera e creram nele.”
Marta e Maria acreditaram e por isso viram a glória de Deus manifestada na compaixão que resgata a vida. E muitos judeus que “viram o que Jesus fez, acreditaram nele”. Mas o que é que eles realmente viram? Contemplaram e testemunharam a profunda humanidade de Deus e este incrível dinamismo que o aproxima das suas criaturas machucadas e oprimidas, sem se importar se cheiram mal. Viram isso na relação de Jesus com Lázaro, com Maria e com Marta, e por isso acreditaram! Crer é deixar os estreitos limites dos nossos medos e interesses e aderir a Jesus Cristo e à sua ação promotora de vida. É claro que os primeiros beneficiados somos nós mesmos, mas este é apenas uma das consequências do ato de crer. A fé nos leva a reconhecer que “cada vida é sagrada porque a criação é de Deus e a bondade de Deus a permeia completamente”, e a “assumir o compromisso de ser membro da comunidade vivente da criação, colaborando com o projeto divino para que se realize e consolide a sua vontade em todas as criaturas” (CF 2011, n° 153-154). Voltemo-nos a Deus inspirados na oração que Bonhoefer elevou a Deus na prisão. Senhor, as trevas nos envolvem, mas em ti há luz. Sentimo-nos sozinhos, mas tu não nos abandonas. Sentimo-nos desfalecer, mas em ti encontramos socorro. Provamos a inquietação, mas em ti encontramos a paz. A amargura nos devora, mas em ti encontramos a paciência. Não compreendemos teus caminhos, mas tu sabes qual é a boa estrada para nós. Acolhe-nos como membros vivos do teu corpo e assim te ajudaremos a chamar para fora, a resgatar os homens e mulheres das sepulturas que os aprisionam. Assim seja! Pe. Itacir Brassiani msf
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