No primeiro domingo da quaresima fomos convidados/as a vencer o pecado, a superar o medo frente à nossa própria finitude e impotência e a abrirmo-nos à Palavra que aponta para o infinito do nosso Desejo e para a limitação dos recursos do nosso Planeta. Neste segundo domingo somos levados/as a escutar o que Jesus nos diz mediante sua Palavra e suas ações. No centro do seu ensinamento está o desapego frente a qualquer superioridade ou privilégio, a solidária identificação com a pessoa humana comum, a comunhão de sonho e destino com a humanidade oprimida. E isso nada tem a ver com o desejo infantil de armar tendas nos píncaros do poder e nos shoping center’s, estas modernas e letais catedrais do consumo. Como Abraão, precisamos partir em busca de novos espaços de vida e de bênçãos para todas as famílias da terra.
“Que isso nunca te aconteça!”
Mateus começa sua narrativa registrando que o fato acontecera “seis dias depois”, e isso me parece importante. O que havia acontecido seis dias antes? Jesus perguntara aos discípulos o que o povo pensava sobre ele, e ouvira que em geral o identificavam como profeta. Interrogando os próprios discípulos, ouviu de Pedro uma resposta perfeitamente enquadrada no messianismo judaico, equidistante de qualquer sinal de humana vulnerabilidade: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo!”
Jesus sentiu necessidade de corrigir este messianismo marcado pela idéia de poder e anunciou que em Jerusalém seria malvisto, preso, torturado e morto nas mãos das autoridades religiosas. Em nome dos discípulos Pedro reagira procurara dissuadir Jesus desse caminho, pois um Messias deveria manifestar o poder de Deus não poderia sofrer. Jesus indentificara nas palavras de Pedro uma tentação vinda do diabo e pedira que ele se afastasse e mudasse sua visão.
Na sequência, Jesus corrigiu atenta e demoradamente as expectativas de sucesso e honra que povoavam a mente e o coração dos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,24-25). Mas parece que os discípulos, com Pedro à frente, não conseguiam – ou não queriam!? – compreender, nem sequer escutar...
“Este é o meu filho amado. Escutem o que ele diz!”
Fixemos agora nossa atenção na narração da transfiguração. Penso que o centro da mensagem está mais na dimensão auditiva che no aspecto visual. É verdade que a mudança no aspecto visual de Jesus – o brilho do rosto e das vestes – chamam a atenção dos discípulos e provoca entusiasmo e eles desejam prolongar no tempo esta experiência. Como sempre, experiências de poder e da glória tranquila, fugaz e mortal que as acompanham costumam embriagar e podem levar ao fanatismo.
Mateus nos faz saber que Jesus aparece acompanhado por Elias e Moisés e conversa com eles. Não faz referência ao conteúdo desta conversa, mas aí estão dois ícones da história do povo de Israel: Moisés faz lembrar o êxodo libertador e Elias recorda a profecia corajosa, radicada na experiência de um Deus que caminha com seu povo mas não se deixa prender em nenuma imagem. Liberdade e profecia parecem ser o conteúdo do diálogo, mas os discípulos estão mais interessados na glória e no explendor.
A nuvem paradoxalmente tenebrosa e luminosa que envolve os discípulos embriagados recorda o êxodo e, ao mesmo tempo, mostra que se trata de uma revelação importante. Se antes os discípulos estavam achando tudo muito bom e bonito, caem no chão e são tomados pelo medo quando são envolvidos pela nuvem. Parece que o temor é maior ainda quando ouvem a ordem: “Este é o meu filho amado, nele está o meu pleno agrado: escutai-o!” Não podemos esquecer a lição de um Deus crucificado por amor.
“Senhor, é bom ficarmos aqui!... Vou fazer aqui três tendas...”
Somos chamados a dar ouvidos a Jesus Cristo, a não renegar o messianismo que ele assume e propõe: o caminho do amor que serve e que dá a vida. Este é o caminho de Jesus de Nazaré e o caminho que ele propõem a todos os/as que querem ser seus discípulos/as. Ele não promete sucesso nem honra, mas pede esquecimento de si, amor sem fronteiras, profecia sem medo. Mas Jesus compreende nosso medo e nossa confusão. Aproxima-se e estende-nos a mão,: “Levantai-vos, não tenhais medo!”
É preciso ter precaução diante de algumas experiências religiosas. O intimismo e o espiritualismo que as envolvem podem ser perigosos, inclusive porque escondem uma inaceitável indiferença para com a sorte dos oprimidos e uma letal aliança com o poder das elites. A tentação de construir tendas e palácios em lugares inacessíveis aos simples humanos sempre rondou perigosamente a Igreja, e nem Pedro e seus sucessores são imunes a ela. É preciso descer da montanha e não esquecer a lição da solidariedade.
Mas a Campanha da Fraternidade nos recorda outra experiência que nos seduz perigosamente. Trata-se da sensação paradisíaca produzida pelo consumo insaciável de produtos sempre mais sofisticados e substituíveis. E não faltam pessoas que, embriagadas pelo falso brilho das mercadorias, propõem armar tendas nos shopings e paraísos turísticos, sem se preocupar com a montanha de lixo sobre a qual estão sentadas, com a acelerada diminuição da biodiversidade e com o iníquo e desigual acesso aos bens.
“Ele nos chamou a uma vocação santa.”
O caminho trilhado e proposto por Jesus Cristo, autenticamente humano e plenamente divino, é mais amor e serviço que sofrimento. Mas o amor não foge do sofrimento. Na prisão, Paulo experimenta isso na própria carne, mas o vive como graça. E pede que não nos envergonhemos da sua humanidade. É nesta humana capacidade de sofrer que se esconde a maior glória que podemos desejar. Uma vida testemunhada como amor e serviço traz em si a vitória sobre a morte e o brilho da imortalidade.
É isso que o velho Abraão, ouvinte da Palavra e pai da fé, nos mostra. Ele escuta e obedece um Deus que ele não vê e parte para uma terra que não sabe qual é nem onde fica. Totalmente aberto à Utopia e à inextinguível fecundidade da fé, Abraão parte confiando naquele que é fiel e guarda quem o teme, como diz o salmista. Ele é guiado pela confiança de que pó da estrada se mudará em terra plantada e o ventre seco de Sara abrigará uma vida promissora.
Eis nossa vocação! Somos chamados a ser filhos/as com o Filho e como o Filho: mais servos/as que senhores/as, mais irmãos/as que doutrinadores/as, mais próximos que administradores/as, mais caminhantes que doutores/as, mais ouvintes que locutores/as. São pessoas assim as que agradam e comprazem a Deus. Homens e mulheres assim não são multidões, mas são imprescindíveis. São sinais da humanidade nova e reconciliada que está em lenta e ininterrupta gestação.
“Levantem-se e não tenham medo!”
Neste segundo domingo da quaresma peçamos ao Senhor que abra nossos ouvidos e alimente a nossa fé com sua Palavra. Que ele nos ajude a superar a insaciável sede de sucesso, a destruidora fome de honra, a enganosa confiança no poder, a doentia prepotência do saber. Que ele nos ensine a caminhar ao lado das grandes testemunhas que viveram como profetas e testemunhas, servos/as e irmãos/as, inclusive aqueles que, mesmo não sendo cristãos, deram e dão o melhor de si pela vida do Planeta.
Como não lembrar aqui nosso inesquecível Dom Oscar Romero, de cujo martírio faremos memória no próximo dia 24? Com sua vida atormentada na busca da fidelidade ao Evangelho ele nos ensina a não cair na tentação de armar tendas nos espaços tranquilos dos templos enquanto os templos vivos de Deus são desfigurados. Ele nos ensina a descer da montanha e manter o rumo da caminhada ao lado dos pobres, mesmo que isso leve a duros enfrentamentos. Sua memória nos pede mais conversão que beatificação.
Deus Pai e Mãe, que te comprazes no amor concreto e generoso dos teus filhos e filhas: diante de ti depositamos os humildes dons da nossa vida, entre os quais a disposição de escutar e compreender sempre melhor a Palavra e o Caminho do teu Filho e nosso irmão. Esperamos ser acolhidos no amor que congrega e alimentados pela Palavra que renova as forças. Ajuda-nos a escutar e acolher o que teu Filho nos ensina com sua firme decisão de ser aliado e parceiro dos homens e mulheres nos seus sonhos e lutas, e de compartilhar os custos neles implicados. Não nos deixes cair na tentação de armar piedosas tendas longe das dores e dos clamores das tuas criaturas e faz com que retornemos desta Eucaristia revestidos da coragem dos profetas e da esperança dos sonhadores. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
Um comentário:
Olá, seu blog, está cada vez mais bonito e xique! Parabéns!!! Partilha essa sabedoria!!! rsrsrs
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