quarta-feira, 7 de abril de 2010

Carta desde El Salvador, Povo e Igreja pascais

Carta desde El Salvador, Povo e Igreja pascais (16/03 a 04/04/2010)

Cheguei a El Salvador em 16 de março, a tempo de participar do congresso teológico na UCA (Universidad Centroamericana), e das bonitas celebrações do 30º aniversário do martírio de Monseñor Romero, que impactam bastante o coração.
Permaneço aqui até 21 de junho, com meu espanhol algo "torto", mas aprendendo cada dia um pouquinho mais, sobretudo quando me encontro com as crianças, que são muito boas mestras.
Não vim sozinho, pois sei que trago no coração muita gente querida a mim, e a quem El Salvador e sua Igreja “romeriana” são muito queridos. Por isso me sinto impelido a compartilhar o que venho vivendo por aqui.
Passei a Semana Santa com o povo simples das comunidades do interior do país, no departamento de Chalatenango (carinhosamente, Chalate): paróquia San Bartolomé, de Arcatao (comunidades Los Pozos, Huizucar, el Bajío, Carasque, etc), onde trabalha o Pe. Miguelito, SJ que, em sua juventude, esteve muito próximo a Romero, e que há anos tem acompanhado o povo pobre do interior. Passei também por San José las Flores e diversos outros rincões, cantones e pueblos. O Tríduo Pascal o celebrei com o povo de outra paróquia, em Las Vueltas (muitas voltas, aliás, entre montanhas). Foi um desimenso presente de Deus!, a que devo sempre me lembrar de agradecer.
Esse sertão salvadorenho é uma região que foi muito castigada pela guerra e massacres (ao todo, no país, há registro de 227 massacres a civis, com cerca de 10 mil pessoas assassinadas). As comunidades eclesiais eram muito visadas, a ponto de terem por vezes que manter escondida a Bíblia. Num encontro de oração para catequistas alguém formulou uma prece por quem, há não muitos anos atrás, arriscava-se para anunciar a Palavra de Deus (“matava-se a catequistas pelo fato mesmo de ser catequistas”). Por proximidade e fidelidade a seu povo e solidariedade às lideranças das comunidades (delegados da Palavra, coordenadores/as, membros das equipes litúrgicas,...), morreram, igualmente, religiosas, padres, e o bispo (Romero manifestou que seria triste que, numa Igreja com tantos mártires, não ocorresse isso, pois seria um mau sinal de que a hierarquia e a vida consagrada estariam longe de seu povo e sem compromisso efetivo com ele). Em El Salvador resplandece (ao lado também de infelizes exceções) uma Igreja perseguida e martirial, que segue muito viva e dinâmica, e na qual também as gerações mais jovens, das filhas e filhos da guerra, guardam a memória desse testemunho dos mais velhos e dos caídos/as, e dão continuidade a seus passos, neste novo contexto pós guerra civil e de albores de novos tempos.
Próximas à fronteira, tais localidades são, quase que na totalidade, repovoações, porque essa gente se refugiara em Honduras (compartilhando a Mesa Grande, significativo nome dum acampamento), deixando a região praticamente desabitada. Foram retornando ao fim da guerra ou, ao menos, quando os massacres se tornaram menos intensos; ou mesmo em meio a fortes enfrentamentos do exército com a guerrilha, mas para ajudar ativamente no processo de libertação de seu povo e permanecer ao lado dos/as parentes e amigos/as que haviam ficado, e correr juntos/as o mesmo risco. Sua consciência não lhes permitia viver longe do perigo, para proteger sua própria vida, pois a existência individual estava subordinada à vida do seu povo e era entendida na perspectiva do serviço a ele. Houve sim quem se incorporasse à guerrilha, em equipes de apoio ou mesmo como combatentes. É muito temerário, porém, emitir um juízo sobre isso, ainda mais quando se olha a realidade de fora. Certo: por princípio, não devemos ceder a nenhuma violência (Romero dizia que matar é mais fácil; difícil é morrer para que outros/as tenham vida). Contudo, diante da violência institucionalizada (e estando aqui, entendi melhor o significado palpável dessa expressão), a alternativa extrema passou a consistir entre se deixar matar em massa, ou assumir alguma forma possível de resistência. Para muita gente, entrar na guerrilha não foi uma escolha ideológica, mas uma opção pela sobrevivência coletiva. Miremos bem: não um esforço de garantia individual, que tantos/as foram mortos/as, mas a entrega de sua vida para que seu povo tivesse um futuro. Isso não anula as reais contradições da luta armada, seu substrato ideológico, etc. Porém situa a questão noutro horizonte: o povo não quer violência, mas também não está disposto a ser vítima passiva ante a insensibilidade e crueldade de quem detém o poder e absurdos privilégios.
Mesmo já conhecendo um pouco a história salvadorenha, não imaginava o quão terrível e brutal tenha sido a repressão às organizações populares e à Igreja comprometida com os/as pobres. Em cada família há cicatrizes, em cada casa há uma poça de sangue, às vezes de grande volume (sangue de 4, 5, 6, ou mais pessoas da mesma família). Romero não se cansou de profeticamente denunciar a violenta e sistemática repressão principalmente às indefesas famílias campesinas: o poder econômico da oligarquia já não se contentava com seu braço político a governar unicamente a seu favor (Romero ouviu de um agricultor, e o citou certa vez: “em nosso país a lei é como uma cobra, que só pica a quem anda descalço”), mas recorria à força militar e aos grupos para-militares e aos esquadrões da morte (“Orden”, “Mano Blanca”,...) que sem piedade espalharam terror, tortura, violações e assassínios.
No dia 14/05/1980, por exemplo, ocorreu o massacre do rio Sumpul, quando, próximo à localidade de Las Aradas, não tão longe de Las Vueltas, cerca de 600 civis, famílias inteiras (homens, mulheres, jovenzinhos/as, crianças, abuelos e abuelitas) das guindas - população desplazada, levas de gente migrante, em longas filas de caminhantes sem comida nem água, intentando atravessar o rio e chegar a Honduras - foram assassinados numa operação conjunta dos dois países, com apoio do imperialismo ianque (oficiais do exército salvadorenho, incluindo o Atlacatl, seu batalhão de elite responsável também pela morte dos 6 jesuítas da UCA, da funcionária Elba Julia e de sua filha Celina, de 15 anos, em 16/11/1989, foram treinados na Escola das Américas, dos EUA). No Sumpul, os disparos partiram de cada lado da fronteira, de modo que quem escapava de ser metralhado, sucumbiu por afogamento. Ouvi, que me contaram, com comoção, que alguns sobreviventes, que conseguiram subir em árvores e se mantiveram escondidos da vista de seus algozes, e a tudo presenciaram, depois (em seguida a re-encontrarem sua gente e relatarem o massacre) só puderam se quedar transtornados, ensandecidos pela dor...
Também ouvia, em Arcatao, noite adentro, um homem e um outro homem que, perambulando cada qual pelas ruas e pela praça, gritava sozinho palavras ininteligíveis, seus traumas.
Na beira das estradas há profusão de cruzes, não de vítimas de acidentes, mas a indicar os lugares, documentados ou presumíveis, de mais vidas roubadas. Aqui e ali há singelos monumentos em homenagem aos assassinados/as: letreiros com nomes, e fotos ou desenhos.
Hoje qualquer pessoa de 18 anos de idade ou mais (os Acordos de Paz datam de 1992) é sempre um(a) sobrevivente.
E acaso isso tudo não muda radicalmente o que seja a trajetória duma pessoa, e a de um povo?
Não faltam também os mutilados/as: um homem sem braço, à porta de sua casa; outro semi-paralisado por uma bala alojada na cabeça. Ou, como na foto do modesto museu que se vai organizando junto ao Centro de Formação da paróquia de Arcatao, uma jovenzinha apoiando-se em muletas, sua perna decepada (não longe da foto estão expostas roupas e chinelinhos de criança semi-destruídos, resgatados dos lugares de massacres). Ou (ao passarmos por um dado lugar) a evocação da criança que, atraída por uma espécie de lebre, pôs-se inocentemente, naquelas imediações, a correr atrás do animalzinho, e foi feita em pedaços, vítima fatal da explosão duma mina terrestre...
Cartazes, calendários de parede e camisetas estampam inúmeros desses rostos e nomes que não se esquecem.
Na igreja de Arcatao, ao fim da Missa, na 4ª-f Santa, a Moça vem, de longe, pela primeira vez, e se fotografa ao lado da imagem do Pai (próxima ao presbitério, a parede do templo, dum lado e doutro, mesclada à via-crucis de Cristo Jesus, é só de rostos e nomes de gente caída na guerra, para que a memória se mantenha viva e a morte não se prolongue, não se repita; para que a violência passe, e as flores e sorrisos fiquem): “Papai morreu na guerra quando eu era nenê. Não cheguei a conhecê-lo” (por detrás da abstração da guerra há histórias reais, pessoas de carne e osso, minha história única e irrepetível, e como agora a sinto, e como agora preciso ir reconstruindo-a, reconciliando-me com ela).
Na praça de Las Flores, na praça de Las Vueltas estão expostos restos da guerra (bombas que foram jogadas dos aviões e que não explodiram, metralhadoras retorcidas, baionetas que - deseja-se - para sempre caladas). Dilacerantes testemunhos a céu aberto.
...Não vou me alongar. Estou tomando algumas notas, e penso redigir um relato, não longo mas mais detalhado, desses dias salvadorenhos, salvadores, salvantes - esse povo crucificado e Servo, acostumado ao sofrimento, que vai tirando o pecado do mundo, que nos vai impulsionando à conversão. E que, no entanto, sorri largo, como se não tivesse sido obrigado a provar tanto fel. Sorri, espantosamente alegre, esperançoso, sem rancor, pondo-se a caminho para adiante. Querendo Justiça, sim, sem se resignar às forças de morte e a uma falsa reconciliação que equivaleria à impunidade e à aprovação de iniqüidades ou conivência com crimes assim abomináveis. A gente, contudo, sorri, acolhe, e mesmo perdoa, respirando Fortaleza e Esperança. Sua fisionomia, no entanto, mostra-se precocemente envelhecida, e mães aparentam ser as avós.
Uma Mãe vem ao meu encontro e seu sorriso a ela se adianta. Saúda-me com espontânea cordialidade. Vendo pendurado um quadro em sua homenagem, pergunto-lhe: “e a senhora também se dedicou muito para o bem de sua gente?” Sua resposta impressiona: “o primeiro que dei foi meu esposo e seis filhos”. Em verdade, sete: uma filha, cinco filhos, e mais uma filhinha que morreu enferma por falta de condições de ir atrás de atendimento médico, em meio às intermináveis peleias e a impossibilitação de circular pelas estradas.
Após semana tão realmente santa, porque passada junto a esse santo povo de Deus, agora sigo meu tempo de estudos, residindo novamente em San Salvador, na comunidade São Alberto Hurtado, com meus companheiros jesuítas. Na UCA, dos mártires Ignacio Ellacuría e companheiros, estou acompanhando o curso monográfico de Miguel Cavada sobre As homilias de Romero (Cavada foi quem organizou a edição crítica das homilias, em seis volumes), e as aulas de Cristologia, com Jon Sobrino. Além disso, vou fazendo minhas leituras, enquanto vou também vivendo outras experiências e conhecendo outras facetas da história dessa terra pascal que tanto sofreu com a amarga guerra, os massacres, a grande tribulação na qual lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,14), mas que segue ressuscitando com o Cristo e construindo a cada dia, com Fé e Esperança, sua Vida Nova, na onipresença de San Romero de América, testemunha maior: “Não abandonarei meu povo, mas correrei com ele todos os riscos que meu ministério me exige” (11/11/1979; Homilias, vol. 5, p. 530); “a palavra fica, e esse é o grande consolo de quem prega: minha voz desaparecerá mas minha palavra, que é Cristo, permanecerá nos corações de quem a tiver querido acolher” (17/12/1978; Homilias, vol. 4, p. 65). Romero da mais profunda espiritualidade comprometida!, homem de Deus e do seu povo, a quem tendo-o amado, amou até o fim, até o extremo de ofertar a própria vida (cf. Jo 13,1).
“Com Romero, Deus passou por El Salvador” (palavras de Ellacuría, repetidas com freqüência por Jon Sobrino). O Cristo Ressuscitado segue passando em nossas vidas, também pela memória viva de Romero, ressuscitado no povo salvadorenho, e na de tantas outras vítimas. Que saibamos vê-Lo e ouvi-Lo, e nos pôr com firmeza a caminho!...


Pe. Rogério Mosimann da Silva, SJ

(05 de abril de 2010, 2ª-f da Oitava da, mais do que nunca, PÁSCOA)

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